Rififi / Du Rififi Chez les Hommes

Nota: ★★★½

Anotação em 2011: Rififi, que o americano Jules Dassin fez na França em 1955, merece toda a fama que tem, todos os elogios que recebeu. E haja fama e elogios. É um dos policiais mais cultuados, mais respeitados que há.

É a história, ou melhor, a radiografia de um grande assalto, desde os antecedentes, os preparativos, até tudo o que ocorre depois. É da mesma linhagem nobre, portanto, de outros belos filmes. John Huston fez O Segredo das Jóias/The Asphalt Jungle, em 1950. Depois veio este Rififi, de 1955. Stanley Kubrick fez O Grande Golpe/The Killing, em 1956. Henri Verneuil fez Os Sicilianos/Le Clan de Siciliens, em 1968. E, em 1970, Jean-Pierre Melville fez O Círculo Vermelho. OK, no filme de Kubrick não são jóias, é dinheiro vivo, mas o princípio, em todos eles, é o mesmo: a anatomia de um crime, de um grande assalto.

O próprio Dassin voltaria ao tema em Topkapi, de 1964 – e não pode haver dois filmes sobre roubo de jóias mais diferentes entre si do que Rififi e Topkapi. Este último é colorido, alegre, brincalhão. O planejamento, o roubo, tudo é uma grande brincadeira para seus participantes. Rififi é o oposto: é preto-e-branco, é noir até a medula, é tenso, duro, pesado.

Paris é personagem importante do filme

Dassin havia sido posto na lista negra do macarthismo, acusado de comunista, ou filo-comunista, depois de ter feito elogiadíssimos filmes noir, barra-pesadas: Brutalidade, Cidade Nua, Mercado de Ladrões, Sombras do Mal. Exilou-se em Londres, depois em Paris.

Paris é uma personagem importante de Rififi. Há diversas seqüências passadas nas ruas da maravilhosa cidade, nas grandes avenidas da área central, em ruelas de bairros mais afastados. Diversas vezes a câmara, colocada em um carro, vai percorrendo a paisagem parisiense.

O protagonista, Tony le Stéphanois (Jean Servais, então um dos maiores astros do cinema francês), um homem aí de uns 50 e tantos anos, acabou de passar cinco anos preso. Desfruta os primeiros dias de liberdade jogando baralho num quarto fechado nos fundos de um bar, fumando muito. Quando o dinheiro acaba, pede socorro ao amigo Jo (Carl Möhner), antigo colega de profissão, agora casado com Louise (Janini Darcey) e pai apaixonado de um filhinho de uns cinco, seis anos, Tonio (Dominique Maurin).

Jo e seu amigo italiano Mario (Robert Manuel) planejam roubar uma grande joalheria, próxima da Place de la Concorde, o lugar que reúne as mais elegantes joalherias do mundo. O plano deles é, durante o dia, na hora do almoço, de pouco movimento nas ruas, fazer um corte no vidro da vitrine e roubar duas ou três peças, rapidamente. Querem que Tony participe do golpe, mas ele a princípio não se interessa, diz que está velho, cansado.

Depois de encontrar sua mulher com outro, o anti-herói quer realizar o maior assalto da história

O interesse de Tony, naquele momento, é rever sua mulher, Mado (Marie Sabouretm na foto). Fica sabendo que Mado agora está com outro homem, Pierre (Marcel Lupovici), dono de um cabaré, quase um prostíbulo, na região de Montmartre. Vai até lá, encontra Mado, leva-a para o pequeno apartamento onde está morando e…

Não, melhor não revelar o que se passa ali; apesar de estarmos ainda bem no início do filme, é uma seqüência chocante, impressionante, e revelar o que se passa nela seria um spoiler. Mas é necessário dizer que é extremamente bem filmada, essa seqüência noir, cruel – toda feita sem explicitude alguma, mostrando os fatos sem os mostrar às claras.

Depois do reencontro com Mado, Tony muda de idéia. Agora não só aceita participar do roubo à joalheria, como quer que seja não um rápido furto de algumas peças: quer que seja um grande assalto, para levar as jóias mais preciosas, as que estão guardadas num grande cofre.

Para um trabalho de tal vulto, será necessário mais um homem, e Mario tem o nome certo: Cesare, também italiano, um homem que tem a fama de que nenhum cofre resiste a ele – e ele não resiste a nenhuma mulher. Cesare é interpretado pelo próprio Jules Dassin, que se escondeu – como se isso fosse possível – sob o pseudônimo de Perlo Vita.

A sequência do grande roubo, que está bem na metade do filme, dura mais de 25 minutos, e é extraordinária, antológica. São mais de 25 minutos sem uma única palavra, em silêncio quase total. A música de Georges Auric, que em alguns momentos do filme chega a ser um tanto estridente, pára no momento em que o assalto se inicia. Vemos, em silêncio, todos os detalhes da ação. Ouvimos apenas os ruídos produzidos pelas ferramentas – ruídos surdos, suaves, para que o roubo não seja descoberto.

Nunca tinha tido a oportunidade de ver Rififi, até agora. Por isso, não sabia o quanto o assalto a uma joalheria da Place de la Concorde de O Círculo Vermelho/Le Cercle Rouge, que Jean-Pierre Melville faria em 1970, se parece com esta seqüência impressionante de Rififi, feito 15 anos antes.

Os acontecimentos que se seguem ao assalto, a trama, a história, é tudo um brilho. Noir, noir a não mais poder.

O livo que deu origem ao filme popularizou a palavra rififi

Rififi se baseia no livro que tem o mesmo título do filme no original, Du Rififi Chez les Hommes, e que havia sido lançado em 1953, dois anos antes de o filme ser produzido. Foi o segundo livro publicado por Auguste Le Breton.

Le Breton nasceu em 1913; seu pai foi morto na Primeira Guerra em 1915. Abandonado pela mãe, foi parar em orfanatos, ou “centros de educação vigiada” – autênticas prisões, quase campos de concentração. O primeiro livro que publicou, Les Hauts Murs, os muros altos, era exatamente um relato autobiográfico sobre sua trágica experiência nesses “centros de educação vigiada”. O livro deu origem a um filme excelente, duríssimo, barra-pesadíssima, dirigido por Christian Faure, de 2008, que no Brasil teve o título de Entre os Muros da Prisão.

Depois de passar anos naqueles orfanatos-prisões, tinha tudo para virar um marginal, um bandido. Virou escritor. Escreveu cerca de 70 livros, muitos deles histórias policiais, com gângsteres, bandidos de diversos tipos, deserdados da fortuna.

Diversas de suas obras foram adaptados para o cinema, depois deste Du Rififi Chez les Hommes – em que ele colaborou como co-roteirista e autor dos diálogos. Le Clan des Siciliens, obra de 1967, foi transformada em um ótimo filme por Henri Verneuil em 1969, que aqui teve o título de Os Sicilianos. Le Breton morreria, aos 86 anos, em 1999.

Tem-se que foi Le Breton que criou a expressão rififi – criou, ou no mínimo foi o primeiro a divulgá-la na linguagem escrita. A partir do livro, e do filme, palavra se universalizou. Está no Aurélio como sinônimo popular de “rolo”.

A tragédia parte do amor desesperado de dois homens por suas mulheres

Para o filme, foi composta uma canção que apresentava a palavra “rififi” às pessoas mais cultas, que não a conheciam. “La Chanson Le Rififi”, de M.Philippe-Gérard e Jacques Larue, é cantada no cabaré-inferninho de Pierre, o novo marido de Mado, por uma das moças que trabalham lá, Viviane (interpretada por Magali Noël, na foto, num papel que transpira sexo).

Cesare, o arrombador de cofres importado da Itália para fazer o serviço com a quadrilha, irá se apaixonar perdidamente por Viviane. E o advérbio perdidamente é literal. Muito do que acontecerá após o grande roubo terá muito a ver com a paixão do italiano que não resiste a uma bela mulher pela cantora do cabaré – assim como tem a ver pela paixão (e ódio) de Tony por Mado.

Um personagem que é “a imagem viva do fracasso”

Jules Dassin ganhou o prêmio de melhor diretor por Rififi no Festival de Cannes de 1955. E o filme ganhou todos os elogios possíveis da crítica no mundo inteiro.

Diz Georges Sadoul, em seu Dicionário de Filmes: “A seqüência que fez, legitimamente, o sucesso do filme foi aquela quase documentária, da perfuração do teto e do cofre-forte, sem que se pronunciasse uma só palavra, o que tornou tanto mais eficiente a montagem dos ruídos.”

Sadoul foi muito econômico. Já o Guide des Films de Jean Tulard se derrama – diz que se poderia falar sobre o filme durante horas, e se estende longamente sobre ele. Alguns trechos:

Du Rififi Chez les Hommes é o filme da renovação. Renovação do thriller psicológico à francesa, ele demonstrou que a arte e a ladroagem podem resultar num bom casamento. Nova arrancada após uma travessia do deserto de quatro anos de Jules Dassin, caçado pelos estúdios americanos no macarthismo, acolhido na França por H. Bérard, um produtor inteligente. Se os diálogos e os atores fazem de Rififi um filme tipicamente francês, é no entanto uma oportunidade de Dassin filmar um de seus thrillers neo-realistas de que ele tinha a receita em Hollywood: a mesma atmosfera sombria e pessimista, o mesmo sentido do absurdo… Simplesmente, as ruas (talentosamente filmadas) de Paris ocupam o lugar daquelas de Nova York ou San Francisco. Retorno ao primeiro plano igualmente de Jean Servais (na foto abaixo), na época relegado a um relativo esquecimento. Rosto devastado, voz cavernosa que deixa passar com reticência entre dois lábios contraídos, ele é a imagem viva do fracasso.”

Caramba, como escrevem bem os porras dos franceses.

A imagem viva do fracasso! É exatamente isso que passa Jean Servais (1910-1976), mais um de tantos grandes nomes das artes francesas nascido na Bélgica – como Jacques Brel, Georges Simenon.

E agora, um pouco do belo texto de uma americana, Pauline Kael: “Um quarteto de ladrões arromba uma joalheria e durante uma tensa meia hora os vemos trabalhar, em silêncio. Parece um documentário muitíssimo hábil sobre como desligar um alarme contra arrombamento e abrir um cofre, e isso é absorvente do começo ao fim, porque vemos os assaltantes como artesãos e celebramos o trabalho de equipe, a elegância, o triunfo deles. Por ironia, vemo-nos simpatizando com seu cansaço honesto após a empreitada desonesta. Daí em diante, o filme, feito na França pelo diretor americano Jules Dassin, segue a tradição de Scarface, Inimigo Público e O Segredo das Jóias (e de Macbeth, anterior a eles), levando as figuras trágicas, acuadas (agora símbolos de nossos próprios instintos anti-sociais), a um acabamento cadavérico. Ao longo do percurso, Dassin mantém as coisas ativamente perversas, com aparições instantâneas de prostitutas do submundo, drogados e um assassino, um seqüestro e um (aqui corto fora uma informação que considero spoiler). Rififi é o avô de uma enxurrada de filmes de suspense sobre como desmontar sistemas de segurança e invadir bancos e museus, mas sua distinção particular está no tom sórdido.”

O livro 501 Must-See Movies diz que Rififi foi fotografado lindamente: “Nenhum estúdio poderia substituir aquelas ruas, cafés e bares. A fotografia preto-e-branca cria um estilo maravilhoso e captura o clima da paris dos anos 50. O assalto em si é um grande exemplo da arte de fazer cinema.”

É isso aí. Um grande clássico, que merece todos os elogios que recebeu.

Rififi/Du Rififi Chez les Hommes

De Jules Dassin, França, 1955.

Com Jean Servais (Tony le Stéphanois), Carl Möhner (Jo), Robert Manuel (Mario Ferrati), Jules Dassin (Cesare/César), Janine Darcey (Louise), Marcel Lupovici (Pierre Grutter), Pierre Grasset (Louis Grutter), Robert Hossein (Remi Grutter), Dominique Maurin (Tonio), Magali Noël (Viviane), Marie Sabouret (Mado), Claude Sylvain (Ida Ferrati)

Roteiro Jules Dassin, com a colaboração de Auguste Le Breton e René Wheeler

Baseado no romance de Auguste Le Breton

Diálogos Auguste Le Breton

Fotografia Philippe Agostini

Música Georges Auric

Produção Pathé Consortium Cinéma, Indusfilms, Société Nouvelle Pathé Cinéma, Primafilm. DVD Aurora.

P&B, 122 min.

***1/2

9 Comentários para “Rififi / Du Rififi Chez les Hommes”

  1. É um filme empolgante. No ano anterior, Jean Becker nos deu um “noir” notável, com o magnífico Jean Gabin, chamado “Touchez pas au Grisbi”, e no ano seguinte ao Rififi, foi
    a vez de Melville nos oferecer “Bob le Flambeur”, que teve uma refilmagem bastante
    inferior de Neil Jordan como “Lance de Sorte”
    (The Good Thief/2002), com Nick Nolte. Esses tres “noir” franceses, filmados em 1954, 1955 e 1956, têm em comum, além da origem e da excelência, serem em preto e branco, terem
    como tema um grande assalto (hold up) e hoje serem considerados clássicos. Outro ponto:
    sua crítica informa que Georges Sadoul define o rosto de Jean Servais como “devastado”, que foi como sempre o adjetivei. Afinal, ele tinha apenas 45 anos
    de idade e parecia um septuagenário…Ou foi
    maquiagem (primorosa, diga-se, se for o que ocorreu) ou ele estava em ruínas…

  2. Surpreende-me que as empresas de treinamento de executivos não tenham (ao menos as que conheço) utilizado o magistral trabalho em equipe em programas e aulas. Não há palavras! Destaco também a música!

  3. rififi-filme que assisti há mais de 50 anos e até hoje me traz recordações- porque não sei

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