Rashomon

Nota: ★★★★

Anotação em 2011: Rashomon é uma obra-prima. É um dos filmes mais brilhantes, mais bem realizados, mais inventivos da história do cinema. Formalmente, é a perfeição. A narrativa – a forma engenhosa com que a história é contada – permanece surpreendente, acachapante, mais de 60 anos depois. E a densidade, a profundidade do filme, dos temas que discute, é algo absolutamente ímpar.

Os temas são os mais sérios, mais importantes, mais universais e atemporais que possam existir. A verdade e as diferentes versões que se podem construir a partir dos fatos. Desejo, ambição, cobiça, vergonha, honestidade/desonestidade, amor próprio, violência, dominação, poder, inveja. A humanidade é, afinal, definitivamente, uma invenção que deu errado? Ou há alguma esperança de que, no meio de tanta podridão, possa existir algum bem?

Rashomon tem um tom bíblico. De tragédia grega. De Shakespeare.

Pensei em Shakespeare, enquanto via o filme, e revia diversas seqüências, para acompanhar melhor os diálogos belíssimos, algo metafísicos, muitas vezes abertamente poéticos.

Não sou um conhecedor de Shakespeare; a rigor, não sou conhecedor de coisa alguma, muito menos de Shakespeare. Mas me lembrei de uma bela definição que ouvi muitas décadas atrás, mais ou menos assim: se algum dia uma civilização extra-terrestre quisesse tentar compreender a humanidade, teria em Shakespeare os exemplos de todas as emoções, todos os sentimentos de que o homem é capaz.

E me ocorreu, diante da beleza de Rashomon, que Akira Kurosawa é assim uma espécie de Shakespeare do cinema.

Dos grandes velhos mestres, ele é o que tratou com mais profundidade e seriedade da larga gama das emoções humanas, do senso de moral, do bem e do mal. É bem possível que Kurosawa seja, ao lado de Ingmar Bergman e Satyajit Ray, um dos cineastas mais sérios, mais densos, mais profundos, mais – com perdão da palavra – filosóficos que já houve. Bergman vai fundo na angústia existencial básica – quem sou, onde estou, para onde vou; Ray examina os papéis do homem na sociedade, os vícios, a corrupção. Kurosawa abarca tudo.

Medo de parecer metido a besta – mas fazer o quê?

Releio os parágrafos acima e morro de medo de que o texto pareça fresco, pretensioso, metido a besta, papo de frequentador assíduo da Mostra, ou daquele chato que fala asneiras na fila do cinema perto de Woody Allen-Alvy Singer e Diane Keaton-Annie Hall. Cacete, não quero parecer com aquele chato, mas fazer o quê? Foram esses pensamentos que me ocorreram ao ver, extasiado, este filme extraordinário.

Três homens se abrigando de uma chuva torrencial, bíblica

Chove torrencialmente, como no dilúvio bíblico, como na Macondo de Cem Anos de Solidão. Vemos uma grande edificação perdida no meio do campo – talvez um antigo templo, um antigo castelo, ou inacabado ou em ruínas, ou as duas coisas, sabe-se lá. Lá dentro, protegendo-se da tempestade, estão dois homens, um com aparência de camponês, um lenhador, o outro, bem mais jovem, que veremos depois é um religioso.

Essa grande construção – aprendi depois de ver o filme – na verdade é um portal, um portal de entrada para uma cidade japonesa, como havia na Idade Média. Trata-se, portanto, da ruína do portal para um lugar chamado Rashomon.

O lenhador: – “Eu não entendo. Não consigo entender nada.”

Chega então à grande edificação um terceiro homem, visivelmente pobre, homem do povo. Vem correndo sob a chuva, abriga-se no edifício. Os dois outros estão tão absolutamente perdidos em seus pensamentos que mal percebem a chegada do terceiro homem. O lenhador deixa escapar mais uma frase:

– “Não entendo nada. Não consigo entender.”

O homem pobre se aproxima dos outros dois. Curiosidade – mais uma das características do ser humano:

– “O que está errado? O que você não entende?”

Tomadas de grande, rara beleza

Cada tomada de Akira Kurosawa é um quadro, uma pintura. Cada tomada é cuidadosamente estudada, para obter a maior beleza plástica. Kurosawa costumava desenhar cada plano, antes de filmá-lo. Rashomon é de 1950; lá pelos anos 1980 começou a ser comum a coisa da storyboard, o desenho prévio de cada plano. Kurosawa já fazia isso muito antes de virar moda.

É algo um tanto teatral a forma com que os rostos daqueles três homens são mostrados nas diversas tomadas. Teatral no sentido de colocação, de marcação estudada de cada um no palco – mas a marcação teatral elevada à melhor potência, já que se trata de cinema, que tem muito mais recursos que o tablado teatral.

“Nem o homem mais sábio já ouviu uma história tão estranha”

O lenhador: – “Nunca ouvi uma história tão estranha.”

O homem pobre: – “Por que você não me conta? (Aí ele olha para o religioso, e prossegue.) O que aconteceu aqui para termos um sábio padre conosco?”

O religioso: – “Nem mesmo o renomado sábio padre do templo de Kiyomizu já ouviu uma história tão estranha como esta.”

O homem pobre: – “Então, você também conhece essa história estranha?”

O religioso: – “Este homem e eu vimos e ouvimos tudo sobre ela.”

O homem pobre: – “Onde?”

O religioso: – “No Palácio de Justiça.”

Tanto o religioso quanto o lenhador testemunharam diante dos magistrados, no Palácio de Justiça, sobre o que viram.

O espectador não vê nem ouve o juiz, os juízes, as autoridades. Num brilhante achado de narrativa, vemos os depoentes de frente, como se a câmara estivesse na mesma posição dos olhos do juiz, ou juízes – mas nunca vemos as autoridades. E, em outro achado brilhante, o personagem que depôs primeiro aparece atrás do que está depondo, sentado no chão atrás do atual depoente, de frente para a corte, e portanto de frente para a câmara.

Um crime bárbaro – e cinco diferentes versões sobre o que ocorreu

O lenhador conta para o homem do povo como foi seu depoimento, o que ele viu – e vemos então esta primeira versão da história. Ele conta que subiu a montanha para cortar lenha, e então viu um chapéu de mulher preso a um galho de árvore, e depois um boné de samurai pisoteado, e depois um pedaço de corda cortada, e depois o corpo de um homem assassinado, e mais adiante um amuleto brilhante com forro vermelho.

Houve um crime: um samurai foi assassinado na floresta, na montanha. O samurai estava com sua mulher. Um ladrão conhecido, famoso, orgulhoso de sua condição de bandido, Tojomaru – fascinantemente, o bandido é o único que tem seu nome pronunciado, dito claramente – foi preso e acusado do crime.

No tribunal, depõem o lenhador, que foi o primeiro a ver o corpo do samurai assassinado e o primeiro a avisar a polícia, o religioso, que viu o casal, o bandido Tojomaru, e a própria mulher.

No momento do crime, estavam presentes o samurai, a mulher, o bandido.

Depõe também, diante do tribunal, um médium, que conta a versão do samurai assassinado.

Cada versão tem sua própria história – cada uma é bastante diferente de todas as outras. Há alguns pontos em comum, mas são histórias diferentes.

Qual das versões é a verdadeira – a do morto, a do assassino, a da mulher? Alguma delas é verdadeira? Ou cada uma tem parte da verdade, e parte de mentira, criada para deixar bem quem está contando a história?

E tem gente que acha que Tarantino reinventou a narrativa…

E aqui me permito uma pequena digressão. Rashomon acirra minha indignação, que já era profunda, contra os recém-chegados que dizem que Quentin Tarantino reinventou a forma de se contar uma história no cinema.

E, já que, como diria Zeca Afonso, estou com a faca e o queijo na mão, aproveito para dizer que, entre Cidadão Kane e Rashomon, sou Kurosawa na cabeça.

Por temor, o homem pobre não conta no tribunal tudo o que viu

O lenhador não contou ao tribunal tudo o que viu. Sua versão – a primeira que o espectador vê – foi muito rápida, sucinta, sem detalhes. Na verdade, ele viu muito mais do que teve coragem de dizer às autoridades. Pobre, humilde, atemorizado diante do tribunal, atemorizado por ter visto um crime envolvendo pessoas muito ricas, o samurai e sua esposa, guardou para si a verdade. É só bem para o final do filme que, pressionado pelo homem do povo e um pouco também pelo padre, ele narra os fatos.

Rashomon, repito, fala de todas as emoções básicas do ser humano – e fala também da diferença entre as classes sociais, da injustiça social.

A única testemunha do que aconteceu na floresta, na montanha, que contará a verdade é o lenhador pobre.

“O mundo é uma espécie de inferno, e os homens não fazem sentido”

No meio daquelas imagens de extraordinária beleza, quadros, pinturas, obras-primas em cada plano, surgem frases assim:

“A vida realmente é delicada e passageira, como o orvalho da manhã.”

“Quanto mais eu ouço, mais fico confuso. Mas as mulheres usam lágrimas para enganar todo mundo. Elas enganam até elas mesmas.”

“Ouvi dizer que o demônio vive aqui em Rashomon, fugindo com medo da ferocidade dos homens.”

E aí, infelizmente, não consigo deixar de imaginar que Ali Babá vive muito longe de Brasília, fugindo com medo da cobiça dos atuais detentores do poder. .

Perdão por localizar o mal em algo estrito. Kurosawa fala do mal genérico, do amplo, do imanente.

Como se coloca neste diálogo:

O religioso – “Se os homens não puderem confiar nos outros, esta terra poderia perfeitamente ser o inferno.

O homem pobre: – “Certo. O mundo é uma espécie de inferno.”

O religioso: – “Não! Não quero acreditar nisso!”

O homem pobre: – “Ninguém vai ouvir você, não importa o quanto você berre. Pense: em qual dessas versões da história você acredita?”

O lenhador: – “Nenhuma delas faz sentido.”

O homem pobre: – “Não se preocupe com isso. Os homens não fazem sentido.”

O Leão de Ouro em Veneza e o Oscar honorário de melhor filme estrangeiro

Rashomon ganhou o Leão de Ouro do Festival de Veneza – um dos três mais importantes do mundo, ao lado de Cannes e Berlim – de 1951. Teve uma indicação ao Oscar de 1951, na categoria de direção de arte e, em 1952, a Board of Governors, a Junta de Diretores da Academia, deu a ele o prêmio honorário de melhor filme estrangeiro entre os exibidos nos Estados Unidos em 1951. (Até 1955, era a Junta de Diretores que dava o prêmio – até então honorário – de melhor filme em língua estrangeira; só a partir de 1956 a votação foi aberta a todos os membros da Academia que tivessem assistido a todos os cinco filmes indicados nessa categoria.)

Acho isso um feito inimaginável, fantástico, porque a) havia apenas sete anos que terminara a guerra entre Estados Unidos e Japão, e b) Hollywood nunca foi muito de olhar para longe de seu umbigo, e não havia nada mais distante do umbigo de Hollywood que o cinema sério, denso, pesado, de Akira Kurosawa.

Além do Oscar, Rashomon mereceria de Hollywood uma bela refilmagem: 14 anos depois, em 1964, o respeitável Martin Ritt faria uma nova versão do filme extraordinário de Kurosawa, ambientado no Velho Oeste; The Outrage, no Brasil Quatro Confissões, tem um elenco de peso: Paul Newman, Laurence Harvey, Claire Bloom e Edward G. Robinson. (Depois de rever Rashomon, revi Quatro Confissões, e gostei muitíssimo de revê-lo. Em breve minha anotação sobre ele estará aqui.(

Não foi a única vez que Kurosawa ajudou o gênero western, que começava a ser um tanto menosprezado, a partir dos anos 1960. Seu Os Sete Samurais, de 1954, foi refilmado como Sete Homens e um Destino/The Magnificent Seven, de 1960, um tremendo sucesso.

Um mestre japonês que globalizava tudo

Um mestre japa que adapta Shakespeare para a realidade japonesa (Trono Manchado de Sangue é uma versão de Macbeth), adapta clássico da literatura russa (O Idiota), e que, em diversos de seus filmes, faz lembrar o bardo inglês do século XVI; um mestre japa que, nos anos 1950, faz filmes que seriam refeitos nos Estados Unidos. Um mestre japa que, reconhecido e admirado no Ocidente, não conseguia mais, na velhice, obter financiadores no Japão, e foi então auxiliado e produzido por jovens americanos, Martin Scorsese e George Lucas.

E aí tem nego que acha que a globalização é invenção do FMI nos anos 1990, ou então de FHC em pessoa, para ferrar os companheiros trabalhadores brasileiros.

Rashomon seria meu campo de experiências”, diz Kurosawa

Akira Kurosawa fala de Rashomon em um capítulo inteiro e também no epílogo de sua autobiografia, lançada no Japão em 1984, editada no Brasil em 1990 com o título de Relato Autobiográfico, pela Estação Liberdade. Dá vontade de jogar fora tudo o que anotei e publicar apenas o que o cineasta escreveu.

Em 1949, quando planejou e rodou Rashomon, ele estava com 39 anos. Começara como assistente de direção, passara a diretor de segunda unidade, e já havia dirigido e escrito o roteiro de vários filmes, a partir de 1942. Rashomon, conforme o cineasta relata no seu livro, nasceu da junção de um roteiro que já havia sido escrito por Shinobu Hashimoto, baseado no conto “Num bosque”, de Ryunosuke Akutagawa, com outro conto do mesmo autor, “Rashomon”. A ação das duas histórias que resultaram no roteiro do filme se passava no período Heian (794-1184).

Rashomon seria meu campo de experiências, o lugar em que poderia aplicar idéias e desejos que cresciam a partir de minha pesquisa sobre filmes mudos. ( ) Para fornecer a atmosfera simbólica de fundo, decidi usar o conto de Akutagawa, “Num Bosque”, que desce às profundezas do coração humano como um bisturi de cirurgião, deixando nuas suas complexidades e distorções. Esses estranhos impulsos do coração do homem seriam expressos através de um jogo de luzes e sombras. No filme, pessoas que seguissem o caminho da mata em seus corações vagueariam em imensas selvas. Mudei a locação para uma grande floresta. Selecionei as florestas virgens das montanhas que rodeiam Nara e a floresta do templo Komyoji, fora de Kioto. Havia apenas oito personagens nesse filme, mas a história era tão complexa quanto profunda. O roteiro foi realizado da forma mais direta e grave possível.”

“Seres humanos não são honestos a respeito de si próprios”

Ele conta que estava feliz com a escolha do diretor de fotografia, Kazuo Miyagawa, com quem há muito queria trabalhar; com o compositor Fumio Hayasaka; e com o elenco – “todos eram atores cujos temperamentos eu conhecia; não poderia ter desejado melhor formação”.

E no entanto, um dia antes das filmagens, ele foi procurado pelos três diretores assistentes contratados pelo estúdio, o Daiei. Disseram eles que o roteiro era confuso; pediam que Kurosawa o explicasse a eles. O cineasta argumentou que bastava que lessem o roteiro, “escrito com a intenção de ser compreensível”, mas os três não ficaram satisfeitos.

“Graças a sua persistência, dei-lhes a explicação”, escreveu Kurosawa. E transcreve então que disse aos diretores assistentes:

“Seres humanos não são honestos a respeito de si próprios. Não podem falar de si mesmos sem embelezar a situação. Este roteiro retrata homens assim, que mentem o tempo todo para se sentir melhores do que são. Também mostra a necessidade pecaminosa de seguir com essa falsidade lisonjeira além-túmulo. Até o personagem que morre age dessa forma quando fala aos vivos, através de um médium. Egoismo é um pecado que o ser humano carrega consigo desde o nascimento, e é o mais difícil de redimir. Este filme parece-se com uma estranha pintura num pergaminho, que o ego desenrola e expõe.”

Incensado ao redor do mundo, malhado em sua própria terra

Depois de Rashomon, Kurosawa fez Hakuchi, adaptação de O Idiota, de Dostoiévski. Desentendeu-se com a direção do estúdio, o Shochiku; as críticas no Japão foram pavorosas, e o outro estúdio para o qual já havia trabalhado, o Daiei, retirou sua proposta para que ele dirigisse um novo filme.

“Cheguei em casa deprimido, sem forças sequer para abrir a porta e entrar. De repente, minha mulher apareceu, pulando de alegria e dizendo: ‘Parabéns!” Fiquei indignado. Perguntei: ‘Parabéns por quê?’ E ela: “Rashomon ganhou o Grande Prêmio!’ Rashomon havia conseguido o Leão de Ouro no Festival Internacional de Cinema de Veneza. Eu não precisaria mais comer arroz frio.”

Segundo diz Kurosawa em seu Relato Autobiográfico, mesmo depois que sua obra ganhou o Oscar honorário de melhor filme em língua estrangeira, os jornais japoneses insistiam em dizer que as premiações “apenas refletiam o interesse ocidental pelo Oriente”. Aquilo, diz ele, foi um golpe muito grande, e continuou sendo: “Por que o povo japonês não acredita no valor do Japão? Por que enaltece tudo o que é estrangeiro e denigre tudo o que é japonês?”

Essa parte do relato de Kurosawa faz a gente pensar que o Japão não é tão diferente do Brasil quanto se pode imaginar.

“Um estudo superlativo sobre a verdade e a natureza humana”

Ran, de 1985, está no livro 501 Must-see Movies, mas Rashomon não consta. Ocupa, no entanto, duas páginas na edição brasileira de 1001 Filmes Para Ver Antes de Morrer. Está também em Off-Hollywood Movies – A Film Lover’s Guide. Pauline Kael o incluiu em seu 5001 Nights at the Movies, e Sérgio Augusto fez o mesmo na edição brasileira do livro da grande crítica americana, reduzido para 1001 Noites no Cinema.

Pauline Kael o define como “excelente filme enigmático”, para em seguida dizer que “as seqüências introdutórias e conclusivas são entediantes”, e que “a lamúria da mulher é quase o bastante para levar o espectador à saída mais próxima”, para concluir que o filme “transcende esses desconfortos, tem sua própria perfeição”.

Às vezes (raras vezes) Dame Kael, a rainha da crítica americana, parece ficar meio no muro.

Leonard Maltin deu a cotação máxima de 4 estrelas: “O primeiro grande sucesso internacional de Kurosawa é um estudo superlativo sobre a verdade e a natureza humana; quatro pessoas envolvidas num caso de assassinato e estupro dão versões diferentes do que aconteceu.”

Georges Sadoul, em seu Dicionário de Filmes, chama a atenção para um detalhe que me impressionou muito: a trilha sonora – excelente, extraordinária, quase um poema sinfônico, de autoria de Fumio Hayasaka – é extremamente ocidentalizada. Parece o trabalho de um compositor ocidental. Sadoul diz que a música “retoma o tema do Bolero de Ravel”. Sim, há o que me pareceu uma variação em torno do tema do Bolero, no momento em que a mulher está depondo, e ao longo da narrativa dos acontecimentos segundo a versão dela.

“O animal humano possui a característica marcante do enaltecimento próprio”

No epílogo de sua autobiografia, Akira Kurosawa diz que Rashomon o fez ratificar um aspecto infeliz da personalidade humana. “Alguns anos atrás”, escreveu ele, no início dos anos 1980, “a televisão transmitiu o filme, pela primeira vez, junto a uma entrevista com o presidente da Daiei. Não pude crer no que ouvia. Esse homem, depois de ter demonstrado tanta aversão pelo projeto desder seu início, depois de ter afirmado que o filme acabado era ‘incompreensível’, de ter humilhado o executivo da companhia e o produtor que facilitaram as filmagens, agora tomava orgulhosamente para si o crédito pelo sucesso de Rashomon. Ele ressaltava a proeza de, pela primeira vez na história do cinema, uma câmara ter sido apontada diretamente para o sol. Em nenhum momento, no seu discurso, mencionou meu nome ou o nome do cinegrafista autor da façanha, Kazuo Miyagawa.

“Ao ouvir aquilo, tive a sensação de voltar às entranhas de Rashomon. Era como se as patéticas frustrações pessoais e as fraquezas que tentei retratar no filme estivessem sendo mostradas na vida real. De fato, os homens têm imensa dificuldade em falar sobre si mesmos como realmente são. Fui lembrado, mais uma vez, de que o animal humano possui a característica marcante do enaltecimento próprio.

“E, ainda assim, não estou em posição de criticar aquele presidente da companhia. Chego a este ponto escrevendo algo que se parece uma autobiografia, mas duvido que tenha conseguido revelar honestidade sobre mim mesmo nestas páginas. Suspeito que tenha deixado de fora minhas características mais negativas e, de uma forma ou de outra, embelezado o resto. Em todo o caso, sinto-me incapaz de continuar colocando a caneta sobre o papel com boa-fé. Rashomon foi meu portão de entrada para o cinema internacional; como autobiógrafo, não consigo atravessar o portal Rashomon em direção a minha vida restante. Talvez um dia seja capaz de fazê-lo.”

Credo. Depois disso, não há absolutamente mais nada a dizer.

Rashomon

De Akira Kurosawa, Japão, 1950.

Com Toshiro Mifune (Tajomaru, o bandido), Machiko Kyo (a mulher), Masayuki Mori (o samurai), Takashi Shimura (o lenhador), Minoru Chiaki (o religioso), Kichijiro Ueda (o homem do povo), Fumiko Homma (o médium), Daisuke Kato (o policial)

Roteiro Shinobu Hashimoto e Akira Kurosawa

Basedo em contos de Ryunosuke Akutagawa

Fotografia Kazuo Miyagawa

Música Fumio Hayasaka

Direção de arte So Matsuyama

Produção Daiei Eiga (Daiei Motion Picture Company). DVD Continental.

P&B, 88 min.

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18 Comentários para “Rashomon”

  1. Post fantástico, não está nadica pretensioso, está, sim, na falta de uma palavra mais precisa, erudito. Mas nem é isso, é pespicaz, talvez. A referência en passant a Macondo, a interface com os demais diretores, os diálogos, tudo enriquece e diversifica. E, claro, mencionar meu querido 7 homens e um destino já ganha pontos extras.

    E este é meu Kurosawa preferido (mas preciso ver mais filmes dele, ah, preciso, vi tão poucos)

  2. Excelente post, do melhor que aqui tenho lido.
    E há que ver Rashomon e o mais rápido possível.

  3. Pensei na floresta no sentido bíblico, lugar de perigo, de sombras, de pecados… Pode ter sido usada no filme por motivos meramente casuais, mas em Kurosawa, tudo é funcional. Portanto, vejo o filme como uma grande representação da humanidade. Todos mostrando seu melhor e/ou pior. “Uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria, significando nada”, tal qual está na peça “Macbeth” de Shakespeare. Aliás, os diálogos com o dramaturgo inglês não se esgotam aqui, dado já mostrado por vc no post. Basta assistirmos a “Ran” para comprovar isso. Mais uma vez, parabéns pelo post e obrigada por instigar minha curiosidade cinéfila.

  4. Ah, lembrei-me de uma coisa. Não concordamos sempre, ainda bem. Eu gosto muito de Tarantino. Mesmo reconhecendo que ele não reinventou isso ou aquilo, devo admitir que ao menos redimensionou, e tudo de forma muito estilizada. A música então, nem se fala! Mesmo com cineastas clássicos como Sergio Leone em sua parceria com Ennio Morricone, ela era apenas trilha sonora (e que trilha!), mas em Tarantino, é forma de compreendermos o enredo, as personagens, e quando possível, termos uma apreciação mais sensível, apurada dos filmes. Outro abraço!

  5. Oi, Sérgio
    Adorei, mais um filme de tribunal em que o tribunal, como vc muito apropriadamente chama a nossa atenção, não aparece para o espectador. Quer dizer, acho que tribunal sem juiz não é propriamente um tribunal, correto?E o questionamento se existe a verdade, um questionamento tão existencial, tão bergmaniano, é claro que cada um tem a sua verdade ; é isso que ocorre no filme, com quatro testemunhas, cada uma contando a sua versão da estória do assassinato do samurai, todas tendenciosas e falseadas, é claro, viesadas de acordo com os interesses do depoente. Até que o homem pobre acaba sendo convencido a dar a versão que mais se aproxima da verdade e elucida o mistério do crime.
    E lembrei do que vc me falou sobre o uso do preto e branco nos filmes, será que às vezes, como nesse, não é para dar mais carga dramática, já pensou nisso? Estava prestando atenção nas nuances pretas, brancas e cinzas, realmente um bom fotógrafo pode explorá-las melhor que as cores, qual a sua opinião?
    Abraços
    Guenia
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  6. Tudo em Rashomon e de encher os olhos, poesia e auto-entendimento. Gosto de rock e reverencio Lewis, gosto de futebol e reverencio Garrincha, gosto de cinema e reverencio Kurosawa. Seu texto esta belissimo.

  7. Amei o filme e as informações encontradas no texto – magnificamente escrito, como sempre neste blog – só enriqueceram a minha visão a respeito desta obra-prima!
    Muito obrigado, Sérgio!

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