Questão de Imagem / Comme une Image

Nota: ★★★☆

Anotação em 2011: Uma pequena maravilha, este Questão de Imagem/Comme une Image, da dupla Agnès Jaoui & Jean-Pierre Bacri, feito em 2004. Um estudo sobre o comportamento humano, feito de forma extremamente sensível, com atuações excelentes de todo o elenco. O tema são as relações afetivas, familiares, a vaidade, o casamento, a fama, e, em especial, as agruras da adolescência.

Como sempre nos filmes de Agnès e Bacri, os dois, casados na vida real, são autores do argumento e do roteiro, e a direção fica por conta de Agnès.

Como em outros filmes da dupla, o roteiro não tem invenciones, malabarismos. É uma narrativa suave, discreta.

Observamos o comportamento de uma meia dúzia de pessoas – mas, sobretudo, a história enfoca Lolita (Marilou Berry), uma garota aí de uns 16 anos, que, além de todos os problemas inerentes à adolescência, ainda enfrenta uma série de outros, específicos seus: foi criada sem a mãe, que sumiu da vida dela quando era ainda uma criancinha de uns três anos, e o pai, Étienne Cassard (o papel de Jean-Pierre Bacri), um escritor de sucesso, absolutamente egocêntrico, não dá a menor atenção para a filha. Étienne se casou de novo, com uma mulher bem mais jovem, bela, Karine (Virginie Desarnauts), e os dois tiveram uma filhinha que está aí com uns quatro anos. A ela até que Étienne dá um pouco de atenção.

Para complicar ainda mais, Lolita é gordinha, pouco graciosa. Está interessada num garoto bonitinho, Mathieu (Julien Baumgartner), que só dá alguma bola para ela porque o pai dela é famoso, importante. Ela tem plena consciência de que a maior parte das pessoas que a tratam bem o faz por causa do pai.

Barra pesada é isso aí.

Lolita já quis ser atriz; agora, quando a ação começa, estuda canto, canto erudito; faz parte de um grupo, um coral, e tem aulas com uma professora competente, Sylvia (o papel de Agnès Jaoui), mas ocupada demais, às vezes pouca atenta aos alunos.

Sylvia é casada com Pierre (Laurent Grévill), um escritor atormentado porque seu primeiro livro simplesmente não aconteceu. O segundo acaba de sair, e ele está inseguro, amargurado – bem no início da narrativa, numa conversa com Sylvia, diz a ela que não deveria se chamar de “escritor”, e sim de homem que vive às custas da mulher.

Como tantas pessoas já haviam feito antes – para aumentar a amargura de Lolita –, Sylvia vai se surpreender ante a informação de que a garota é filha do grande Étienne Cassard, escritor que ela admira profundamente.

O escritor recém-descoberto e o escritor consagrado ficam amigos

A sorte de Pierre começa a mudar: seu segundo livro recebe críticas favoráveis, uma página inteira do Le Monde; até a um programa de TV ele é convidado.

E Pierre e Sylvia ficam conhecendo Étienne. Surge uma amizade entre os dois escritores – o famoso, agora num momento de crise, de falta de inspiração, incapaz de escrever uma linha faz seis meses, e o recém-descoberto pela crítica.

Lolita, por sua vez, fica conhecendo um garoto de origem africana, Rachid, que prefere ser chamado pelo nome francês de Sébastien (Keine Bouhiza). Todo seu interesse é pelo garoto bontinho, Mathieu, mas, como Mathieu não dá bola para ela, Lolita de vez em quando se encontra com Sébastien.

Étienne e sua mulher convidarão Pierre e Sylvia para passar um fim de semana na casa de campo do escritor famoso; Lolita convidará Sébastien.

Lá pelas tantas, Étienne, com aquele ar de francês bem de vida que aprecia boa comida, anuncia que no almoço de domingo haverá coelho à moda de sei lá o quê. Nesse momento – é um plano de conjunto, vemos aquelas várias pessoas reunidas –, Sylvia lança um olhar curioso, interrogativo, para o marido. O espectador percebe claramente: Sylvia sabe que o marido não gosta de coelho, e se surpreende por ele não dizer nada. Mais tarde, quando estão sozinhos no quarto, ela o interroga: e desde quando você gosta de coelho?

As miudezas, os detalhinhos que demonstram como é o caráter das pessoas

Este é um perfeito exemplo dos pequenos detalhes, das pequenas sutilezas de que é feito este belo filme de Agnès Jaoui. O que é o comportamento humano. As pequenas misérias de que as pessoas são capazes. As miudezas, os detalhinhos que demonstram como é o caráter de cada um.

O filme está coalhado de detalhes como este.

Não há, entre aquela meia dúzia de personagens, ninguém propriamente filho da mãe, mau caráter, sacana, safado. Étienne é um umbigocêntrico, rempli de soi-même, vaidoso até não mais poder, um pai horroroso, um marido imbecil – trata a bela e jovem mulher de maneira grosseira. É um grande babaca – mas não chega a ser um bandido, um filho da mãe.

Pierre se vê envolvido pelos elogios, pela fama que começa a chegar, pela amizade com o grande escritor. O pecado da vaidade é fácil de se cometer, quando a pessoa de repente se vê cercada por elogios. Para não correr o risco de perder pontos com o sujeito famoso, escolherá a omissão, num momento particularmente tenso, delicado, em que tomar uma atitude era bem mais importante do que admitir ou não que desgosta de carne de coelho.

Sylvia, ao contrário, não se omite. Não tem nada a perder, não precisa da amizade do escritor babaca – enfrenta-o de peito aberto. É uma boa pessoa. Demora um pouco, mas acaba percebendo o tamanho da amargura, da tristeza da garota a quem ensina canto.

Andam raros os filmes com personagens de carne e osso, como este aqui

Críticas que tenho lido no AllMovie, escritas por americanos, afirmam que andam raros, no cinema americano, os personagens de carne e osso, tridimensionais – seres humanos, gente como eu e você. Pois são exatamente personagens assim, de carne e osso, tridimensionais, que Agnès Jaoui e Jean-Pierre Bacri criam em seus filmes.

Não me lembro exatamente sobre que filme uma crítica do AllMovie dizia que os atores trabalham não como se estivessem atuando em um filme, mas como se estivessem vivendo de verdade e fossem flagrados por uma câmara. Ah, lembro, sim: era uma crítica sobre Sentimento de Culpa/Please Give, belo, sensível filme independente da diretora Nicole Holofcener.

Pois é exatamente assim que trabalham os atores dirigidos por Agnès Jaoui. Todos eles interpretam com uma naturalidade surpreendente, maravilhosa. É, de fato, não como se estivéssemos vendo um filme, mas como se tivéssemos sido também convidados para um fim de semana na casa de campo com aquele grupo de pessoas.

Uma homenagem a Jacques Demy – ou apenas uma coincidência?

Cassard. O sobrenome de Étienne, o babaca pai da adolescente gordinha – cheia de adversidades na vida, uma boa pessoa, apesar de todas as muitas adversidades –, é Cassard. Me pergunto se teria sido uma propositada, pensada citação de Roland Cassard, o personagem central de Lola, o filme de Jacques Demy de 1961, que iria reaparecer no mais extraordinariamente colorido filme que atesta que o grande amor acaba, sim, Les Parapluies de Cherbourg.

Pode, é claro, ter sido intencional – como pode ter sido uma simples coincidência. Assim como por coincidência Agnès Jaoui tem o mesmo nome da mulher de Demy, a Agnès Varda de As Duas Faces da Felicidade.

Canções em espanhol. Agnès Jaoui gosta de canções em espanhol

A música que a personagem de Agnès Jaoui ensina à pobre adolescente Lolita é erudita – Monteverdi, Schubert. Além de belas peças eruditas, ouvimos no filme algumas canções populares em espanhol – Sylvia e Lolita vão a uma festa em que se tocam canções populares espanholas. Nas horas de folga de sua atividade no cinema – além de dirigir, escrever e atuar em seus próprios filmes, ela também trabalha em filmes de outros diretores, inclusive o mestre dos mestres Alain Resnais –, Agnès Jaoui tem uma carreira bissexta como cantora, e em um de seus discos, Canta, gravou oito músicas em espanhol (e mais uma em português de Portugal e duas em português do Brasil, “O Meu Amor”, de Chico Buarque, e “Samba em Prelúdio”, de Baden e Vinicius, em dueto com Maria Bethânia).

Detalhinho mínimo: o filme que está passando na TV na casa de campo, que Sébastien vê sem grande interesse, é Blood on the Moon, de 1948, dirigido por Robert Wise, com Robert Mitchum, um western que no Brasil teve o título literal de Sangue na Lua.

“Uma comédia de personagens brilhante sobre as aparências”

Questão de Imagem foi apresentado na mostra competitiva do Festival de Cannes, e ganhou o prêmio de melhor roteiro. Teve no total oito prêmios e sete outras indicações.

O Guide des Films de Jean Tulard encantou-se – assim como eu me encantei – com o filme, “uma comédia de personagens brilhante” sobre as aparências, sobre a imagem que projetamos de nós mesmos, a imagem que os outros têm de nós. “Mesmo se a trama, que se passa no meio de escritores em Paris, guarda um fundo amargo, é um filme engraçado, com bastante humor, de réplicas inteligentes e, apesar de suas pequenezas, personagens cativantes.”

Tá certíssimo o guia do mestre.

Grande Jean-Pierre Bacri, imensa, maravilhosa Agnès Jaoui!

Questão de Imagem/Comme une Image

De Agnès Jaoui, França-Itália, 2004

Com Marilou Berry (Lolita Cassard), Jean-Pierre Bacri (Étienne Cassard), Agnès Jaoui (Sylvia Millet), Laurent Grévill (Pierre Millet), Virginie Desarnauts (Karine Cassard), Keine Bouhiza (Sébastien), Grégoire Oestermann (Vincent), Serge Riaboukine (Félix), Michèle Moretti (Édith), Julien Baumgartner (Mathieu)

Roteiro Jean-Pierre Bacri e Agnès Jaoui

Fotografia Stéphane Fontaine

Música Philippe Rombi

Produção Les Films A4, Canal+, Eyescreen S.r.l., France 2 Cinéma, Studio Canal. DVD Europa Filmes

Cor, 110 min

***

Título em inglês: Look at Me

3 Comentários para “Questão de Imagem / Comme une Image”

  1. Conheci este casal de talentos no maravilhoso filme de Resnais, “On Connait la Chanson” (já comentado no Rato Cinéfilo) e desde aí que tenho seguido as carreiras dos dois, sobretudo a da Agnès Jaoui que, para além de uma óptima actriz, é uma realizadora bastante competente e uma cantora muito agradável de se ouvir (também tenho o CD “Canta”). Não conheço ainda este filme. mas quero ver se em breve remedeio isso.

  2. Primeira impressão: um filme que mostra a vida de forma absolutamente normal. Realista. Depois percebe-se, creio até porque mostra a vida e personagens que são pessoas mesmo, não há heróis ou vilões. São gente pura. Claro que o egocentrismo do pai de Lolita é meio exagerado e a depressão de outro escritor assustam. Mas são pessoas. E aí está a beleza e simplicidade do filme.
    Excelente.

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