Persépolis / Persepolis

Nota: ★★★★

Anotação em 2011: Persépolis é uma paulada. E não poderia ser diferente, já que é um filme que fala sobre uma mulher iraniana. Barra pesada, assustador, apavorante. Um grande filme, que todas as pessoas de bem que ainda não viram deveriam ver.

Impossível não lembrar da frase de James Baldwin, escrita nos anos 50, quando as trevas em seu país eram muito piores do que são hoje: “Sou o mais infeliz dos homens, porque sou americano, negro e homossexual”.

Em A Cor Púrpura, o livro da feminista negra Alice Walker tornado filme pelo talento de Steven Spielberg, o marido-patrão da protagonista joga-lhe na cara que ela é a pior coisa que pode existir: “preta, pobre, feia e mulher”.

Não é o caso, evidentemente, de se fazer algo como uma competição de infelicidades, mas não deve haver coisa mais miserável, mais desumana neste mundo do que ser mulher em um país muçulmano em que vigora a sharia, o código das leis islâmicas interpretadas de forma fanática, fundamentalista.

Persépolis, feito em 2007, é a adaptação para o cinema do livro autobiográfico de Marjane Satrapi, uma iraniana nascida em Rasht em 1969. O livro em que Marjane conta a história de sua vida até os 21, 22 anos – e que, portanto, abrange o período entre 1969 e 1990, 1992 – é o que antigamente se chamava história em quadrinhos, hoje novela gráfica.

O filme é dirigido por Vincent Paronnaud e pela própria Marjane Satrapi, os dois também autores do roteiro. O AllMovie diz que os países produtores são o Irã, a França e os Estados Unidos, o que é uma pisada no tomate do magnífico site: naturalmente, obviamente, não há participação na produção do filme da República Islâmica do Irã, a hedionda, assassina ditadura teocrática dos aiatolás. É uma co-produção França-Estados Unidos; diversas empresas se associaram para a feitura do filme, todas francesas e americanas, entre as quais a France 3 Cinéma, a Kennedy/Marshall Company, a Diaphana Films  e a Sony Pictures Classics. (Kathleen Kennedy e Frank Marshall, é bom lembrar, foram durante décadas co-produtores das obras de Steven Spielberg).

          Um visual soberbo. E vozes de grandes, imensas atrizes

É um filme de animação soberbo. Tem um visual acachapantemente belo, um trabalho de animação de fazer o espectador babar – com base no traço nada realista, nada naturalista, e sim simples, básico, como do cartoon em suas origens, como os desenhos animados dos anos 30. Não entendo coisa alguma de animação, nem de desenho, nem de artes gráficas (como, de resto, de coisa alguma), mas as ilustrações deste post certamente indicarão o que pretendo dizer e não consigo. É um traço de estilo mínimo, muito mais próximo de Betty Boop e dos primeiros desenhos de Mickey do que das modernas animações que flertam com algo como o hiper-realismo.

É também, que eu saiba, a única animação produzida nos últimos 50 anos em preto-e-branco, como se fazia nos anos 30. Apenas algumas poucas seqüências do filme – as da abertura, as do final, uma na metade da narrativa – são em cores.

E aí é preciso reconhecer, admitir, ou apenas frisar, que é uma opção corajosa, radical, fazer um filme de animação adulto, com tema pesado, forte, assustador, apavorante, em preto-e-branco.

Os atores que fazem as vozes dos personagens, por sua vez, comprovam que é uma produção cara, e séria, respeitável, de se tirar o chapéu. A voz da personagem central – que tem o nome da pessoa biografada, sem tirar nem pôr, Marjane Satrapi – é de Chiara Mastroianni. A voz da mãe de Satrapi é da mãe de Chiara na vida real, Catherine Deneuve. A voz da avó de Satrapi é de Danielle Darrieux.

(Detalhezinho, lembrança de quem gosta de pequenos detalhes: Danielle Darrieux, esse mito, esse ícone, essa estrela magnífica, havia interpretado quatro vezes a mãe de Catherine Deneuve, esse mito, esse ícone, essa estrela magnífica. Com a voz neste Persépolis, passam a ser cinco vezes.)

Meu Deus do céu e também da terra: um filme de animação que tem as vozes de Catherine Deneuve, Danielle Darrieux e Chiara Mastroianni…

A versão americana tem as vozes de Sean Penn e Gena Rowlands, entre outros. Não sei se isso basta para mostrar o óbvio, mas o fato é que é obrigatório tirar o chapéu diante deste filme, mesmo antes de vê-lo.

Tira-se o chapéu também depois de vê-lo.

          No lugar da ditadura do xá, uma ditadura muito mais cruel e sanguinária

Ao contar a história pessoal de Marjane Satrapi, Persópolis nos conta a história de centenas de milhares de mulheres iranianas, e pretende nos contar a história do Irã ao longo dos últimos quase cem anos. É, necessariamente, uma condensação, um resumo: não se conta a extremamente complexa história de uma nação em um filme de animação de 96 minutos. Mas Persépolis é um filme pretensioso, arrojado, metido: ele quer dar, no mínimo, no mínimo, um resumo da história do Irã nos últimos quase cem anos.

Evidentemente, com o viés da autora.

Marjane era ainda uma garotinha de uns oito, nove anos, quando ouviu de seu querido tio Anouche o seguinte: nos anos 1920, havia no Irã um homem, Reza Khan, que queria acabar com a monarquia da dinastia Qajar, e instaurar a república. Mas aí então os imperialistas britânicos chegaram-se para ele e sugeriram: por que, em vez de instaurar uma república, você não se proclama rei? Você nos dá seu petróleo, nós apoiamos você, e você vira rei.

E então Reza Khan virou o xá da Pérsia, o xá do Irã.

O querido tio Anouche era comunista, e portanto é a sua visão da história, o seu viés, que é passado tanto para a garota Marjane quanto para o espectador. Mas provavelmente não está muito longe da verdade dos fatos.

Segundo se lê nos livros, os nomes Irã e Pérsia co-existiram durante séculos. Mas foi a partir dos anos 1930, durante o reinado de Reza Khan, que o Ocidente foi incentivado a adotar o nome Irã, em substituição à denominação Pérsia. Mas isso não importa muito, até porque não se fala disso no filme.

O que o filme mostra é que, nos anos 1970, enquanto Marjane crescia, o xá Mohammad Raza Pahlavi, o filho de Reza Khan, era um déspota, apoiado pelo Ocidente (leia-se agora, pela ordem, Estados Unidos e Inglaterra), que prendia, torturava e matava os opositores.

E o que foi dito no parágrafo anterior é fato incontestável. Não é uma versão da história segundo um determinado viés ideológico – é a verdade dos fatos.

A família da garota Marjane, rica, instruída, era intrinsecamente anti-ditadura do xá. Os pais, os tios de Marjane diziam que a ditadura seria derrubada, que o povo unido jamais seria vencido; acreditavam nisso, lutavam por isso.

Num movimento iniciado em 1978 e concluído em 1979, o povo foi para as ruas, e o governo do xá foi derrubado. Nada mais feroz que a ira do Irã, como diziam Suely Costa e Abel Silva.

Mas o que veio depois foi muitíssimo pior, como todos sabemos.

Persépolis mostra, de maneira brutal, chocante, apavorante (até porque não poderia ser de outra forma), como a ditadura teocrática dos aitolás não apenas frustrou os sonhos de todos os que combateram a ditadura pró-Ocidente de Raza Pahlavi, como criou uma das ditaduras mais sanguinárias, mais policialescas, mais absolutistas, mais castradoras de qualquer tipo de liberdade de que se tem notícia na história da humanidade.

A ditadura que o lulo-petismo bajulou – e sequer peço desculpas por intrometer este assunto aqui, porque este é um assunto que precisa ser sempre lembrado, frisado, enfatizado.

          Dentro da tragédia do Irã, a tragédia pessoal de uma adolescente

A onipresença da policia religiosa dos aitolás sobre a vida pessoal, íntima, de todos os iranianos, mostrada em Persépolis, é absolutamente apavorante. Yoani Sánchez e o bravo povo cubano que me perdoem, mas os inspetores de quarteirão cubanos parecem fichinha, perto da polícia da ditadura dos aiatolás iranianos. Os tonton macoute dos Duvalier do Haiti parecem dóceis.

Só as SS e a Gestapo de Hitler e a KGB de Stálin parecem tão opressoras quanto é, hoje, a polícia dos aitolás iranianos.

É o que Persépolis mostra.

Durante a guerra Irã-Iraque (1980-1988), ainda garotinha, com uns 13, 14 anos, Marjane exila-se, sozinha, sem ninguém da família, em Viena. Era então uma garotinha inteligente, razoavelmente culta, mas, é claro, ainda não estava formada. Tinha ouvido muitas versões da História, especialmente as do tio comunista; tinha uma natureza rebelde, curiosa, mas era apenas uma adolescente. Os anos que passa em Viena, os anos da transformação da criança em adolescente, são absolutamente pavorosos, angustiantes. Depois que ela volta à sua terra natal, há a frase terrível: “Eu me sentia estrangeira no estrangeiro, me sinto estrangeira em meu país”.

Não deve haver coisa mais miserável, mais desumana neste mundo do que ser mulher em um país muçulmano fanático, fundamentalista.

Nós, que nascemos neste gigante eternamente adormecido, terra dos Sarney, dos Jader, dos Renan, dos Newtão, do energúmeno com 83% de aprovação, deveríamos nos ajoelhar e agradecer aos céus por não ter nascido no Irã, ou no Afeganistão, ou na Arábia Saudita.

Mais ainda as mulheres.

Persépolis tem uma indignação, uma revolta contra a situação da mulher naquela infeliz ditadura teocrática machista que é uma coisa impressionante.

          Dá frio na espinha ver Persépolis logo após a revolução do Egito

Mary e eu demoramos para ver Persépolis. E é uma coisa muito louca ver Persépolis exatamente no segundo dia do Egito sem Mubarack, a ditadura de 30 anos apoiada pelo Ocidente posta abaixo pelo povo nas ruas. Dá frio na espinha.

O Egito não é o Irã, o Egito tem uma tradição de poder laico, não religioso, de muitos séculos, é verdade. Não há aitolás no Egito, e a Irmandade Muçulmana até aqui – escrevo no dia em que vi Persépolis, 13 de fevereiro – tem se mostrado nada radical.

Mas – e Persépolis mostra isso muito bem – no Irã aconteceu assim: todos lutaram pela queda da ditadura do xá, e o país caiu numa ditadura muito pior.

Pode ser que o Egito não siga o caminho do Irã. Pode ser que o Egito se encaminhe para algo mais próximo da Turquia, onde o Estado e a religião são separados, onde há respeito às liberdades e aos direitos humanos básicos. Oxalá. Que Alá nos ajude a todos. Mas existe, sim, o risco de o país virar um novo Irã.

A Rússia não vai bem, pós-queda do comunismo; a Mãe Rússia parece adorar um czar, e aos czares imperiais seguiram-se os czares comunistas, e a estes seguiram-se o czar Putin e as máfias, mas antes isso que Stálin. Não há paz em muitas das ex-repúblicas soviéticas, mas antes isso que Stálin. Não se vive bem na Alemanha do Leste, mas antes isso que a Stasi. Os chineses – cerca de um quarto da população mundial – vivem sob a ditadura do partido único, mas o período de trevas da revolução cultural já passou.

O drama do Irã, no entanto, deixa sempre a dúvida: existirá a possibilidade de países de maioria muçulmana viverem sem o fanatismo, a fé cega, o radicalismo absurdo, desumano, o pior dos mundos, a pior das misérias?

Não sei como Marjane Satrapi  (na foto) responderia a essas questões, tendo já vivido boa parte de sua vida no Ocidente, na França, livre do jugo da ditadura dos aiatolás.

Seria bom para todos, para o mundo inteiro, se ela algum dia pudesse voltar à sua terra natal, mesmo que não fosse para ficar. Para visitar a família, os antigos amigos, conhecidos, os lugares da infância, da adolescência, sem ser presa pela polícia religiosa. Mas não dá para saber se as pessoas de bem conseguirão algum dia derrubar os aiatolás que mantêm manietado, proibido de trabalhar, o cineasta Jafar Panahi, encarceram centenas e centenas de pessoas de bem, e privam todos os cidadãos de seus direitos mais básicos.

Persépolis/Persepolis

De Vincent Paronnaud e Marjane Satrapi, França-EUA, 2007

Com as vozes de Chiara Mastroianni (Marjane Satrapi adolescente e jovem), Catherine Deneuve (a mãe), Danielle Darrieux (a avô), Simon Abkarian (o pai), Gabrielle Lopes Benites (Marjane crinça), François Jerosme (tio Anouche)

Roteiro Marjane Satrapi e Vincent Paronnaud

Baseado na novela gráfica de Marjane Satrapi

Música Olivier Bernet

Montagem Stéphane Roche

Produção 2.4.7. Films, France 3 Cinéma, Kennedy/Marshall Company, The (co-production), French Connection Animations, Diaphana Films, Sony Pictures Classics, Sofica Soficinéma. DVD Europa Filmes

P&B e Cor, 96 min

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9 Comentários para “Persépolis / Persepolis”

  1. A lista de filmes a serem vistos cresce assustadoramente por sua culpa. Estava lendo seu post e lembrando de um livro que me pôs de cabeça pra baixo, chama-se Infiel de Ayaan Hirsi Ali (há também um filme, Submissão – que não vi – cujo diretor foi morto por um fanático muçulmano).
    Estou espalhando seu post em todos os lugares, enviando pra amigos, recomendando enfaticamente (e você bem sabe que eu não poderia divergir mais do energúmeno e tal..mas, puxa! que filme e que post bem escrito).
    Parabéns ou Obrigada, eu digo? Os dois.

  2. Luciana querida, suas mensagens me fazem um bem danado.
    Como você abordou o assunto, acho muito impressionante que você goste do que escrevo já que nós dois temos uma visão oposta sobre política no Brasil… Isso aumenta ainda mais minha admiração por você, que já é bem, bem grande…
    E já anotei na minha lista de filmes a serem visto esse Submissão.
    Um grande abraço.
    Sérgio

  3. Não há dúvidas: fabuloso, por todas as razões. Recomendo e até insisto: vejam-no, por favor.

    Um dos melhores filmes que já vi. A animação é lindíssima e o argumento excelente. E, já agora, é uma boa lição de História e de vida.

  4. Achei o filme sensacional. E, como mulher, posso dizer que senti como de fosse na minha pele. A cena do carro em que a mae dela surta com tanta opressão eh a síntese do sentmento das mulheres muçulmanas.

  5. Mais um filme que assisto por causa de sua recomendação. Filme de primeira. Alem da parte técnica, a história eh arrebatadora. Pra muitos já conhecida, mas sempre importante de ser lembrada, e, neste caso, de uma maneira avassaladora.

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