O Poder e a Lei / The Lincoln Lawyer

Nota: ★★★½

O sonho dourado de muito diretor é recriar, em seus thrillers, o clima noir das novelas policiais de Dashiell Hammett e Raymond Chandler, dos anos 1930, 1940. Esse Brad Furman, de quem nunca tinha ouvido falar, um fedelho, mal saído dos cueiros, como se dizia em Minas, conseguiu.

O Poder e a Lei/The Lincoln Lawyer, uma produção de 2011, se passa na Los Angeles de hoje, e, naturalmente, é, como 99% dos filmes atuais, em cores, mas a atmosfera é noir, pesada, carregada. Há corrupção no ar, como um fog, um smog, uma camada densa de podridão cobrindo tudo. A Justiça falha, a polícia e a promotoria abusam de seu poder, há bandidos, pequenos ou grandes, por todos os lados, ninguém é bonzinho – ou, no mínimo, ninguém é bonzinho o tempo todo. Não se pode confiar em ninguém, ou praticamente em ninguém.

O herói – o advogado do Lincoln do título original, Mick Haller, interpretado por Matthew McConaughey – tem às vezes a aparência de um advogado dos dias de hoje, dos grandes escritórios onde trabalham cem, às vezes 200 advogados, terno escuro novo, camisa branca bem passada. Mas tem um lado Sam Spade, ou Philip Marlowe, os detetives hard-boiled, durões, solitários, daquela época entre guerras; trabalha por conta própria, seu escritório é o Lincoln gigantesco, daqueles que bebem um poço de petróleo por mês, quase tanto quanto ele mesmo, o advogado solitário, bebe de álcool. Tem apenas uma assistente, que trabalha na casa dela, os contatos todos feitos por telefone, e um investigador – Frank Levin (interpretado pelo grande William H. Macy), ex-policial, sujeito de aparência absolutamente anacrônica, com um cabelão de velho hippie.

Como Sam Spade e Philip Marlowe, Mick Haller se mete em encrencas, em brigas, leva porrada, faz besteira. Na Los Angeles pós-yuppismo, Mick Haller é mezzo advogado moderno, mezzo detetive particular pré-bomba atômica.

As coisas, naquele mundo, só funcionam na base da propina, da corrupção

Quando o filme começa, Mick Haller está confortavelmente aboletado em seu escritório – o banco de trás do gigantesco Lincoln, dirigido por seu motorista particular, Earl (Laurence Mason). Haller despacha ao telefone, a caminho de um dos diversos fóruns da cidade onde atenderá a um de seus clientes.

Enquanto entra no fórum, é abordado por um velho conhecido, Val Valenzuela (John Leguizamo), um oficial de condicional – figura autorizada a supervisionar presos em liberdade condicional. Val diz que indicou Haller para um caso quente, de muita grana, um jovem milionário acusado de ter agredido brutalmente e estuprado uma mulher.

Para conseguir falar com seu cliente, Haller tem que pedir favor a um meirinho, funcionário do fórum, que recebe dele uma propina anual para quebrar esses galhos. Ao falar com seu cliente, exige um pagamento maior para conseguir soltá-lo sob fiança. Na saída do fórum, é abordado pela gangue de motociclistas daquele preso; vão conversar sobre o pagamento extra. O espectador vê que são velhos conhecidos, o advogado e o chefe da gangue.

Temos então, com menos de dez minutos de filme, que Mick Haller paga propina a meirinhos para obter pequenos favores; paga propina a um oficial de condicional para ser indicado por ele a novos clientes; e exige pagamento a mais de seus clientes para fazer o seu trabalho.

Pequenas corrupções dentro de um sistema que só funciona na base da graxa, das pequenas propinas, dos pequenos negócios por baixo do pano.

Não que Mick Haller seja um desonesto absoluto, um vendido a uma grande companhia, ou a um grande esquema político sacana, safado. Nem que ele seja um péssimo profissional, um advogado de porta de cadeia, como dizemos nós, ou ambulance chaser, como dizem os americanos, um advogado de fim de linha, como era Frank Galvin, o personagem de Paul Newman no maravilhoso O Veredito. Não é isso.

Mick Haller é um advogado competente, trabalhador, empenhado na defesa de seus clientes, traficantes, bandidos, assassinos – só que joga de acordo com as regras do jogo, e o jogo é feito dessas pequenas corrupções, o dinheiro para o funcionário do fórum, a troca de favores com o oficial de condicional, uma pequena chantagenzinha com o bandido da gangue de drogas para obter um pagamento maioe.

O garotão milionário jura de pé junto que é inocente, que foi vítima de uma armação

E então lá vai Mick Haller para o lugar onde está preso o garotão milionário acusado de agredir e estuprar uma mulher. O garotão se chama Louis Roulet (Ryan Phillippe, na foto ao lado, em uma ótima interpretação, a melhor dele que me lembro ter visto), e é rico mesmo; sua mãe, Mary Windsor (Frances Fisher), é dona de uma das grandes agências imobiliárias de Los Angeles. A mãe tem um advogado de confiança, o sócio de um gigantesco escritório de advocacia, mas Louis quis que o escritório contratasse especificamente Mick Haller para tratar daquele caso na área criminal.

A promotora que estava cuidando do caso era Maggie (Marisa Tomei, aquela gracinha, que continua gracinha, ou está até mais ainda por causa das marcas do tempo, el implacable, el que pasó). E Maggie vem a ser a ex-mulher de Mick Haller, mãe da filhinha delícia do advogado. Assim que vê que o ex-marido é o advogado do acusado, Maggie, responsavelmente, seguindo a letra da lei e da moral, abre mão do caso e o encaminha para um colega.

Louis garante, jura de pé de junto que não agrediu a mulher; a mulher é uma puta, uma profissional, que deu a ele seu endereço; ao chegar ao apartamento indicado por ela, Louis – é a versão dele – levou uma bordoada na cabeça, e, quando acordou, dois sujeitos o estavam dominando; havia sangue da mulher nas mãos dele, mas seguramente tinha sido colocado lá. Em suma: Louis garante, jura de pé junto que é absolutamente inocente, e foi vítima de uma armação. A puta, com mais alguém – diz ele –, armou tudo para processá-lo e obter, em uma outra ação, na área cível, uma indenização altíssima.

Louis transmite absoluta firmeza ao se declarar inocente.

Tem cheiro de verdade – e um cheiro ruim de coisa ruim, uma sociedade podre

Estamos aí com não mais que 20 minutos de filme. Já temos personagens bem construídos, bem definidos. Já temos um clima noir pesado, forte, denso. Já temos tensões, conflitos. As coisas vão piorar demais para o advogado Mick Haller – e a trama vai ficar mais e mais complexa e fascinante.

É uma das tramas de thriller mais fascinante que vi nos últimos tempos.

Tem surpresas, muitas. Tem coisas previsíveis – ex-marido e ex-mulher, hum… a gente sabe onde essa história vai dar. A junção das previsibilidades com as surpresas tornam a história mais fascinante porque, apesar do emaranhado, da riqueza de detalhes, é uma trama plausível. É uma trama inteligente, que absorve o espectador – mas não tem aquele jeito de coisa falsa, artificial, criação de roteiristas espertos.

Tem cheiro de verdade. E um cheiro nada bom de coisa podre, de uma sociedade podre, de uma Justiça muitas vezes injusta, de forças da lei que trabalham mais para si próprias, para seus próprios interesses, do que pela lei.

E não há mocinhos. O herói, o quase-mocinho, se dá a pequenas corrupções, e às vezes a imensos erros.

Dá vontade de ir atrás dos livros desse autor, Michael Connelly

Dá vontade de ler o livro em que o roteirista John Romano se baseou. O romance The Lincoln Lawyer, publicado em 2005, foi o primeiro de uma série de quatro livros com o personagem Mick Haller, escritos por Michael Connelly.

Na verdade, dá vontade de ir atrás de livros de Michael Connelly.

Ele foi o autor de um romance chamado Blood Work, de 1998. O livro deu origem a um roteiro de Brian Helgeland que virou filme em 2002, no Brasil Dívida de Sangue, dirigido e estrelado por Clint Eastwood. Não é dos melhores filmes de Clint em sua fase áurea, pós Os Imperdoáveis, mas é bastante bom.

A trama deste filme aqui, no entanto, dá de dez a zero na trama do livro filmado por Clint. É uma maravilha de trama – e, por causa dela, e do clima noir que esse diretor Brad Furman conseguiu criar, o filme me fez lembrar Chinatown, de Roman Polanski, e Los Angeles Cidade Proibida/LA. Confidential, de Curtis Hanson. E a lembrança dessas duas obras-primas põe este The Lincoln Lawyer num patamar altíssimo.

Close-ups demais da conta. E músicas incidentais bem escolhidas

Dois detalhes. Brad Furman abusa dos close-ups. Não é que use demais – ele abusa. Fica até meio cansativo, como todo abuso. Chega a encher um pouco o saco tanta tela inteira ocupada pelo nariz e pelos olhos dos personagens. O rapaz é novo. O IMDb nem traz sua idade, mas mostra a foto de um garoto, e uma filmografia rala, de iniciante. Jovens iniciantes tendem a cometer abusos; é normal; os arroubos juvenis felizmente são doença que o tempo pode curar, e o menino demonstra grande talento.

O outro detalhe que me chamou a atenção é como ele sabe usar as músicas incidentais. Não conheço nenhuma delas, é claro, são todas recentíssimas, pós-modernas, e, em música popular, sou cada dia mais pré-antigo. Mas é impressionante como o filme coloca canções interessantes nos momentos certos, como as canções interagem bem com a ação.

Um ator que começou bem e depois virou caricatura de si próprio

Uma palavrinha sobre Matthew McConaughey.

Na minha opinião, o rapaz começou bem. Tinha a seu favor, no início da carreira, uma bela estampa e a sorte de ter sido escolhido para bons papéis. Em 1996 fez um jovem advogado defendendo um negro acusado de matar os homens que haviam estuprado sua filhinha de dez anos de idade, em Tempo de Matar/A Time to Kill, de Joel Schumacher, baseado num dos primeiros livros de John Grisham. Em 1997 teve a sorte de ser dirigido por Steven Spielberg em Amistad.

De lá pra cá, fez muita comedinha romântica – e se perdeu ao achar que o melhor personagem que poderia interpretar era o de Matthew McConaughey, jovem ator bonitão.

Neste filme aqui, interpreta a si próprio. Fala arrastado, com o sotaque, o jeito, a empostação de Matthew McConaughey interpretando a si próprio.

É um ator à la Jack Nicholson, John Wayne, Cary Grant, Gary Cooper, Hugh Grant – atores que sempre fazem um papel só, o de si próprios. O exato oposto de Kenneth Branagh, Philip Seymour Hoffman, Liam Neeson, Colin Firth, Woody Harrelson, William H. Macy (na foto acima) – esses grandes camaleões que têm uma cara diferente, uma personalidade diferente para cada papel.

Como o personagem do advogado do Lincoln é um sujeito que fala arrastado, com um sotaque, um jeito, uma empostação de quem adora ouvir a sua própria voz, funciona. Acaba funcionando.

E, apesar de Matthew McConaughey, ou até com a ajudazinha dele, este é um belo filme.

Anotação em setembro de 2011

O Poder e a Lei/The Lincoln Lawyer

De Brad Furman, EUA, 2011

Com Matthew McConaughey (Mick Haller), Marisa Tomei (Maggie), Ryan Phillippe (Louis Roulet), William H. Macy (Frank Levin), Josh Lucas (Ted Minton), John Leguizamo (Val Valenzuela), Michael Peña (Jesus Martinez), Bob Gunton (Cecil Dobbs), Frances Fisher (Mary Windsor)

Roteiro John Romano

Baseado no romance de Michael Connelly

Fotografia Lukas Ettlin

Música Cliff Martinez

Produção Lionsgate, Lakeshore Entertainment, Sidney Kimmel Entertainment, Stone Village Pictures

Cor, 118 min

***1/2

5 Comentários para “O Poder e a Lei / The Lincoln Lawyer”

  1. Muito bom mesmo este filme. Concordo quando vc fala das atuações do Matthew McConaughey, mas notei que, conforme a trama se desenrola e ele se envolve, aquela arrogância inicial e quase natural, vai esmaecendo para renascer no final, não achou?

  2. Filmaço! Não sei por que demorei tanto tempo pra ver, eu adoro filmes de tribunal desde sempre. Fiquei tensa quase o tempo todo, principalmente depois da armação pra cima do advogado. Também acho que é uma das tramas de thriller mais fascinantes que já vi.

    Eu concordo com o que você disse sobre o Matthew McConaughey (“uma empostação de quem adora ouvir a sua própria voz” foi ótimo, e realmente, aturar a fala arrastada e o sotaque não é fácil, dificulta até o entendimento da língua) mas achei que ele se saiu bem, mesmo fazendo o papel dele mesmo (a primeira vez que o vi num papel importante foi em “Contato”, se não me falha a memória; vendo esse filme agora notei que ele envelheceu mal, tem rugas e marcas demais pra alguém com apenas 40 e poucos anos).
    O Ryan Phillippe eu nunca tinha visto, mas achei fraquinho, assim como a atriz que faz a mãe dele, toda botocada e plastificada. A Marisa Tomei também achei careteira, mas já não lembro se um dia ela atuou bem (e não entendi por que escalaram uma atriz de quase 50 anos pra fazer o papel de uma com 30 e poucos ou 40, ficou esquisito). Os outros estão bem, ou pelo menos na média, mesmo os que fazem papéis secundários. William H. Macy, ótimo como sempre, e Josh Lucas é sempre correto (e um colírio, apesar de não fazer meu tipo).

    Interessante foi ver o personagem do Michael McConaughey cometer pequenas corrupções, mas ainda ter seus conflitos morais, não ser de todo uma pessoa má.

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