O Pequeno Nicolau / Le Petit Nicolas

Nota: ★★★☆

Anotação em 2011: Não dá para haver dúvidas: a intenção do diretor, dos produtores, de toda a equipe, era certamente fazer um filme que recriasse com a maior exatidão possível o clima das histórias em quadrinhos do Petit Nicolas, e agradasse a crianças e adultos. Pois eles conseguiram.

O Pequeno Nicolau é o perfeito filme para ser visto por toda a família. Isso dá para garantir, com toda segurança. Quanto à fidelidade ao espírito das histórias em quadrinhos criadas por René Goscinny e Jean-Jacques Sempé, eu mesmo não posso atestar – não as conheço. Mas todos os indícios são de que, sim, o filme conseguiu exatamente isso.

Fora da França, Goscinny (1926-1977, mais de 500 milhões de exemplares de suas obras vendidas em todo o mundo) tornou-se mais conhecido por outros personagens que criou, com o desenhista Albert Uderzo: Astérix, Obélix e todos aqueles deliciosos gauleses que jamais se renderam ao domínio da Roma do imperador Júlio César. Goscinny também é conhecido como roteirista das aventuras de Lucky Luke. Tanto as aventuras de Astérix quando as de Lucky Luke são mais voltadas para o público juvenil e adulto. As do Pequeno Nicolau são mais acessíveis às crianças – afinal, são o retrato da vida de um garoto de uns oito anos de idade, um garoto normal, como outro qualquer da classe média urbana.

Aparentemente, todo francês nascido nos últimos 50 anos já leu as historinhas do Pequeno Nicolau. Algo assim equivalente ao que no Brasil são Mônica & Cebolinha e sua turma, ou o Menino Maluquinho de Ziraldo, aliás filmado pelo cineasta mineiro Helvécio Ratton.

Para transportar para a tela as histórias do Pequeno Nicolau, o diretor Laurent Tirard – ele também autor do roteiro, ao lado de Grégroire Vigneron – pôde contar com três ótimos atores, três estrelas do cinema francês, garantias de boa bilheteria na França, para os principais papéis dos adultos: Valérie Lemercier como a mãe, Kad Merad como o pai e Sandrine Kiberlain como a professora. Para os papéis dos meninos, foram testadas mais de 900 crianças. Uma das exigências era de que os candidatos não tivessem experiência prévia de interpretação no cinema ou na TV – um pré-requisito para garantir a espontaneidade dos escolhidos.

Deu tudo perfeitamente certo.

Acho que não seria exagero dizer que, dentro de alguns anos, O Pequeno Nicolau estará entre os clássicos dos filmes para toda a família, ao lado de pérolas como Mary Poppins, de Robert Stevenson, e A Guerra dos Botões, de Yves Robert.

Nicolas/Nicolau não tem marca registrada – é um garoto normal, padrão

A voz em off de Maxime Godart, o garoto escolhido para o papel de Nicolas/Nicolau nos introduz aos personagens principais de seu mundinho antes mesmo dos créditos iniciais. Na sua classe da escola primária há Alceste/Alceu (Vincent Claude), o gordinho que só pensa em comida; Geoffroy/Godofredo (Charles Vaillant), o filho do milionário; Clotaire/Clotário (Victor Carles), o burrinho, o pior da classe; Eudes (Benjamin Averty), o filho do policial, fanático por uma briga; Rufus/Rufino (Germain Petit Damico), o atrapalhado; Agnan/Agnaldo (Damien Ferdel), o quatro-olho, o CDF da turma, puxa-saco da professora, dedo-duro; e Joachim/Joaquim, o garoto que ganha um irmãozinho.

(Todos os nomes originais, com exceção de Eudes, foram aportuguesados nas legendas do filme no Brasil, assim como devem ter sido na dublagem. Digo devem ter sido porque não passei perto da versão dublada, claro.)

E, claro, há o próprio Nicolas/Nicolau. Ao contrário de seus coleguinhas, Nicolau não tem nenhuma marca registrada, nenhum sinal particular que o distinga de todas as demais crianças. É a criança mais normal, mais padrão que pode haver.

Seus pais – que, seguindo a tradição das histórias em quadrinhos sobre crianças, da Luluzinha a Mônica, passando por Charlie Brown, não têm nome, aparecem apenas como o pai e a mãe – são igualmente o lugar comum mais comum que pode haver. O pai trabalha muito, a mãe cuida da casa – lava e passa roupa, cozinha, lava a louça, arruma e limpa a casa. Os dois amam o filho, e se amam, mas discutem constantemente pelas bobagens mais mínimas. Um dos motivos recorrentes de discussão é o salário do pai, que a mãe considera baixo; acha que o marido está sendo explorado, que tem que pedir aumento ao patrão.

Uma realidade dos anos 50. Bem, é anos 50, mas não é a realidade

Mãe que cuida da casa, sem trabalhar fora?

Aqui é preciso lembrar que as primeiras histórias do Petit Nicolas chegaram às bancas de jornal belgas entre 1955 e 1958, e começaram a ser publicadas na França em 1959. A realidade que a história em quadrinhos mostrava era a de uma família classe média dos anos 50 – e o diretor Laurent Tirard teve a sensatez de fazer o filme dentro da realidade dos anos 50. Nada de tentar atualizar a história, as situações.

Se bem que não é propriamente a realidade que o filme mostra. É a realidade-fantasia de uma história em quadrinhos criada no final dos anos 50. Todo o universo do filme é limpo, imaculadamente limpo; os garotos vão à escola de calças curtas, mas com colete, gravata e paletó. É verdade que o mundo, as cidades, as ruas, as construções, tudo era mais limpo e a moda era mais severa nos anos 50 – mas isso aqui é a recriação de uma realidade-fantasia de história em quadrinhos. Que ninguém espere ver problemas sociais, conflitos raciais, grandes questões.

Os problemas, as questões colocadas são as do dia-a-dia de garotos: as pequenas disputas na escola, o irmãozinho que chega e Joaquim odeia porque perdeu o lugar de coisa mais importante da casa, o irmãozinho que Nicolau imagina que vai chegar, o pavor de que a mãe e o pai façam como o pai do Pequeno Polegar e o abandone na floresta, a timidez diante da garotinha Marie-Edwige (Elisa Heusch) …

Criaram uma história que não parece um amontado de episódios

Os roteiristas conseguiram, na minha opinião, criar uma historinha que funciona bem num longa-metragem – tem princípio, meio e fim. Claro, há episódios específicos – a chegada da professora substituta; o jantar que pai e mãe resolvem oferecer ao patrão do pai; a visita à escola do ministro da Educação; a arrumada geral na casa que Nicolau e os amigos resolvem fazer como agrado à mãe do herói, etc –, mas ficaram bem amarrados, como capítulos de um livrinho. Tem coerência, tem continuidade.

E, sobretudo, tem graça. Há ótimas situações, ótimos diálogos. E o elenco é afiado. O garotinho Maxime Godart não me impressionou especialmente, mas está bem, e vários dos outros garotos dão show. Mas o grande show, em termos de atuação, quem dá são os dois veteranos, experientes Valérie Lemercier e Kad Merad, ele vindo de um sucesso retumbante, a maior bilheteria da historia do cinema francês, o ótimo A Riviera Não é Aqui/Bienvenue Chez les Ch’tis, ela uma comediante de mão cheia, com experiência também na direção – é dela o bom Palais Royal.

Não gosto muito de ficar fazendo comparações entre o cinema europeu e os vários tipos de cinema que se fazem nos Estados Unidos, mas acho que não é gratuito dizer que, se Hollywood fosse transformar uma tradicional, bem amada história em quadrinhos sobre o universo infantil em um filme, botaria uma atriz lindérrima e um ator boa pinta para fazer mãe e pai do herói. Que maravilha que é ver na tela uma ótima atriz e um ótimo ator que não são belos de morrer – muito ao contrário, são normais, até meio feiosinhos, gente como a gente.

Um pequeno detalhe: para colaborar na redação dos diálogos, os co-roteiristas Laurent Tirard e Grégoire Vigneron chamaram o ator, roteirista e diretor Alain Chabat. Uma coincidência: foi Chabat que dirigiu Astérix e Obélix: Missão Cleópatra, de 2002, o segundo filme baseado nas histórias de Goscinny sobre os irredutíveis gauleses, onde ele também interpreta Júlio César. O primeiro foi Astérix & Obélix Contra César, de 1999; comum aos dois filmes, apenas Gérard Depardieu no papel do gordo Obélix. Isso, é claro, para não falar das diversas animações com as histórias dos irredutíveis gauleses, produzidas nos anos 60 e 70.

“É o filme que eu gostaria de ter visto aos dez anos”

Bem, acho que é isso. Vou dar uma olhada no que já se falou sobre o filme.

O texto que Luiz Carlos Merten publicou no Estadão no dia da estréia do filme em São Paulo, 2 de julho de 2010, é, como sempre, riquíssimo, cheio de informações. E Merten aborda duas coisas sobre as quais eu já havia anotado antes de ler o texto dele – a questão do roteiro com uma história coesa e a lembrança de O Menino Maluquinho e do grande clássico A Guerra dos Botões.

“Seu grande desafio, ele (o diretor Tirard), ele admite, foi criar um roteiro que não fosse episódico, mera justaposição de situações do livro. Tirard concebeu um roteiro original, que agradou ao próprio Sempé, que disse temer pela adaptação – e por isso não quis se envolver –, mas no final gostou do que viu.”

“Assim como se pode comparar O Pequeno Nicolau ao Menino Maluquinho, outra influência aparece – Tirard viu A Guerra dos Botões, a primeira versão, de Yves Robert. É esse cinema que O Pequeno Nicolau tenta recuperar.”

O diretor disse a Merten: “É o filme que eu gostaria de ter visto aos dez anos”. E Merten conta que Tirard tinha por volta de dez anos quando seu pai o levou ao cinema para ver Carrossel de Esperança, de Jacques Tati. De Sandrine Kiberlain – que, no mesmo ano de 2009, interpretou outra professora primária, no drama Mademoiselle Chambon -, Merten ouviu que foi maravilhoso dar vida a um personagem que faz parte do patrimônio cultural francês. Sandrine contou a ele também que sua filha de dez anos adorou o filme.

Le Petit Nicolas foi um grande sucesso de público na França. Não chegou perto de A Riviera Não é Aqui/Bienvenue Chez les Ch’tis, porque esse último filme é um fenômeno absurdo, uma raridade, mas teve mais de cinco milhões de espectadores no seu país.

Uma beleza de filme para toda a família, um filme muito bem-vindo. Até porque não têm sido feito muitos neste gênero.

O Pequeno Nicolau/Le Petit Nicolas

De Laurent Tirard, França-Bélgica, 2009

Com Maxime Godart (Nicolas), Valérie Lemercier (a mãe), Kad Merad (o pai), Sandrine Kiberlain (a fessora), François-Xavier Demaison (o bedel), Michel Duchaussoy (o diretor), Daniel Prévost (o sr. Moucheboume, o patrão do pai), Michel Galabru (o ministro), Louise Bourgoin (a florista)

E os garotos Vincent Claude (Alceste), Charles Vaillant (Geoffroy),

Victor Carles (Clotaire), Benjamin Averty (Eudes), Germain Petit Damico (Rufus), Damien Ferdel (Agnan), Virgile Tirard (Joachim), Elisa Heusch (Marie-Edwige)

Roteiro Laurent Tirard e Grégoire Vigneron

Diálogos Laurent Tirard, Grégoire Vigneron e Alain Chabat

Baseado nos personagens criados por René Goscinny (histórias e diálogos) e Jean-Jacques Sempé (desenhos)

Fotografia Denis Rouden

Música Klaus Badelt

Montagem Valérie Deseine

Produção Fidélité Films, Wild Bunch, M6 Films. DVD Imovision. Estreou em SP 2/7/2010

Cor, 91 min

***

4 Comentários para “O Pequeno Nicolau / Le Petit Nicolas”

  1. Com ótimas sacadas – geralmente em cima dos perfis de cada amigo de Nicolau (o que come muito, o que estuda muito, o que estuda pouco, o briguento etc) -, o filme é daqueles que diverte com simplicidade.

    É tão bem elaborado que a certa altura faz homenagem ao filme A Voz do Coração, que foca na vida de um professor de música. Pois bem, e não é que o mestre volta à cena, agora tentando ensinar a turma de Nicolau? Cena rápida, mas de primeira categoria.

    Criança, adolescentes, adultos… todos têm vez com O Pequeno Nicolau. É escolha certa para quem, de coração e mente abertos, deseja ver um ótimo filme.

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