O Círculo Vermelho / Le Cercle Rouge

Nota: ★★★☆

Anotação em 2010 (postada em janeiro de 2011): O grande roubo das jóias, versão cinema francês 1970. Mais especificamente, versão Jean-Pierre Melville. E reunindo três dos maiores atores europeus da época – Alain Delon, Gian Maria Volontè e Yves Montand, e mais Bourvil.

John Huston fez O Segredo das Jóias/The Asphalt Jungl, em 1950. Stanley Kubrick fez O Grande Golpe/The Killing, em 1956. Jules Dassin fez Topkapi, em 1964. Henri Verneuil fez Os Sicilianos/Le Clan de Siciliens, em 1968. E, em 1970, Melville fez O Círculo Vermelho. OK, no filme de Kubrick não são jóias, é dinheiro vivo, mas o princípio, em todos eles, é o mesmo: a anatomia de um crime, de um grande assalto – desde a origem, o planejamento, passando pelo roubo em si, detalhadamente, até o que acontece depois.

A forma como Melville conta sua história não poderia ser mais fria, distante, desapaixonada. Gélida.

Quando vi Os Sicilianos, anotei que é um relato frio, distanciado. “Tão frio, tão frio, que o diretor já nos avisa logo de cara, antes mesmo dos créditos iniciais, uma espécie assim de sua filosofia. É uma frase do escritor e dramaturgo Anton Tchekov, num letreiro grande, ocupando toda a tela: ‘Quando eu desenho ladrões de cavalo, não digo que roubar cavalos é errado. Essa é uma preocupação dos jurados, não minha.’”

Interessante: Os Sicilianos é de 1968, O Círculo Vermelho é de 1970. Dois filmes franceses, os dois com Alain Delon, fazendo a anatomia de um grande assalto. Os dois são relatos frios, distanciados – gélidos. O Círculo Vermelho me pareceu ainda mais gélido que o antecessor, se é que isso é possível.

Os dois são longos, mas este aqui é mais ainda – o de Verneuil tem 120 minutos, o de Melville, 135 minutos. Muita gente poderia dizer que a rigor Melville poderia cortar uns bons 20 minutos de seu filme. Há diversas seqüências que podem parecer mais longas do que o necessário. Mais ainda: há longas tomadas que podem parecer desnecessárias. Carros andando, carros estacionando. Há até números musicais – três – num cabaré onde os personagens vão se encontrar. Podem parecer inúteis, sem nada a ver com a essência do que se quer narrar.

Sim, mas esse é o estilo do cara, uai. Quis fazer assim, e não assado.

O estilo de Melville em O Círculo Vermelho é uma estranha mistura de muitos detalhes que podem parecer desnecessários, como os que citei acima, com detalhes que não são explicitados – muito ao contrário, são deixados de lado. Uma estranha mistura de longos, longuíssimos silêncios com frases fortes, quase (ou abertamente) pomposas.

Pode-se gostar ou não do estilo – mas é um estilo extremamente pessoal, único, específico.

         Dois criminosos – e seus caminhos vão se cruzar

Para simplificar as coisas, como eu jamais sei fazer sinopses curtas, tomo emprestadas resenhas dos outros. A do Cinéguide francês, o rei da concisão: “Um bandido marselhês libertado tem uma velha conta para acertar e um projeto de um assalto. No mesmo momento, no Trem Azul, um outro bandido consegue escapar. Os caminhos dos dois homens vão se cruzar.”

A do AllMovie: “Corey (Alain Delon) é um jovem bandido francês que acaba de ser libertado da prisão. O bandido fugitivo Vogel (Gian-Maria Volontè) se esconde no bagageiro do carro de Corey. Os dois recorrerão à ajuda de um ex-policial alcoólatra (Yves Montand) para um elaborado assalto a uma loja de jóias. O inspetor da polícia Mattei (Bourvil), de quem Vogel escapou no começo do filme, está no caso tentando recapturar os criminosos.”

Hum… A resenha francesa é bonita mas conta pouco. A do site americano é mal escrita pacas e conta demais.

Os franceses usam a expressão hold-up para designar assalto. Gozado. Não diziam que os franceses se orgulham do francês e detestam as outras línguas? Quanto ao Trem Azul, sei lá, vai ver que o expresso Paris-Marselha tinha esse nome.

         Como epígrafe, uma história budista

Com uma narrativa frígida como o gelo eterno do Pólo Norte, parecida com a de Os Sicilianos, o filme, como seu antecessor, usa uma espécie de epígrafe. Mas aqui Melville se distancia de Verneuil, um diretor cujo estilo é parecer que não tem estilo algum. Melville, um estilista, usa como epígrafe, vejam só, uma história budista.

A primeira coisa que se vê no filme não é imagem, mas palavras – embora depois o diretor vá usar um monte de imagens sem palavras. O filme abre com um letreiro que diz a seguinte frase, atribuída a Krishna:

“Siddartha Gautama, o Buda, o sábio, desenhou um círculo com um pedaço de giz vermelho, e disse: ‘Quando homens, mesmo que não saibam, estão marcados para se encontrar algum dia, não importa o que aconteça a cada um, nem mesmo os caminhos que tomarem. No dia previsto, eles inevitavelmente irão se encontrar dentro do círculo vermelho.’”

Imagens sem palavras, frases fortes, pomposas. Muitos detalhes que parecem desnecessários, muita coisa não explicitada.

O encontro entre o bandido que acabava de ser libertado da prisão com o bandido que acabava de fugir é mostrado de tal forma que o espectador pode até ficar em dúvida sobre se aquilo foi absolutamente casual, ou se, ao contrário, foi tudo muito combinado.

Logo que é libertado, Corey, o personagem de Delon, compra um carro, e viaja do Sul para o Norte, de Marselha para Paris. Vogel, o personagem de Volontè, acaba de escapar do trem em que era levado pelo comissário Mattei (Bourvil). Quando Corey pára numa lanchonete à beira da estrada para comer, Vogel, tendo escapado de seus perseguidores, entra justamente no bagageiro do carro de Corey. É pura coincidência – ou não? O fato é que Corey em seguida oferece a Vogel a parceria no grande golpe que vai protagonizar. E, quando diz a Vogel que vai precisar de um terceiro, Vogel indica Jansen (Yves Montand), e Corey aceita a indicação sem pestanejar.

O acaso botou aqueles três homens dentro do círculo vermelho – é o que parece dizer o filme. O acaso, o mero acaso – ou talvez estivesse tudo escrito, o destino, maktub.

Huston, Kubrick, Verneuil não filosofam – eles contam uma história. Ah, mas Melville, ele filosofa. Faz silêncio durante um bom tempo – a seqüência do assalto em si, a uma joalheria que fica na Place Vendôme, dura uns 20 minutos, em que não se ouve absolutamente nada, nem uma única frase, nem música ao fundo. Mas em outras seqüências ele fala muito, e filosofa.

         O centro mundial das jóias

Ah, sim, a Place Vendôme. A Place Vendôme – se é que não estou chateando com a obviedade – está para o mercado de jóias assim como Wall Street está para o capitalismo mundial, assim como Amsterdã está para o mercado de beneficiamento de diamantes, assim como Zurique está para o paraíso onde ladrões e ditadores do mundo inteiro guardam seu dinheiro.

A Place Vendôme é mais ou menos assim como todas as Tiffany’s do mundo reunidas. Leonard Cohen, quando brincou com a idéia de que os grandes subversivos do mundo primeiro destruiriam Manhattan, depois Berlim, se esqueceu de mencionar a Place Vendôme.

Há uma belíssima tomada da Place Vendôme vista do alto, quando os nossos anti-heróis estão chegando perto do momento do roubo, no meio da madrugada.

         “Ninguém é inocente. Os homens são culpados.”

Ah, sim, mas então Melville filosofa. Ele não se aquieta em mostrar o assalto ao lugar que é o centro mundial das joalherias. No filme em que passa meia hora sem um ruído, Melville sentencia que o gênero humano não tem jeito.

O inspetor Mattei é chamado diante do chefe da polícia da polícia, a Inspection Generale des Services, a corregedoria. Dá-se o seguinte diálogo:

– “Sr. Mattei, não sabia que um suspeito deve ser considerado culpado?”

– “Não para mim, senhor inspetor-geral. Já lidei com tantos suspeitos que eram inocentes…”

– “Está brincando? Ninguém é inocente. Os homens são culpados. Nascem todos inocentes, mas isso não dura muito.

O chefe de Mattei intervém, defende o inspetor:

– “Mattei tem a melhor ficha de toda a polícia há 15 anos!”

Ao que o chefe da polícia da polícia responde:

– “E daí? As pessoas mudam em 15 anos. Todos nós mudamos. Para pior.”

O encontro prossegue por mais um pouco. Ao se despedir de Mattei, o chefe da corregedoria diz:

– “E não se esqueça: todos são culpados.”

E Mattei: – “Mesmo os policiais?”

E o corregedor: – “Todos os homens.”

         Uma seqüência apavorante: o bêbado sem a bebida

A coisa mais absolutamente fascinante do filme, na minha opinião, é uma seqüência que foge inteiramente do tom de todo ele. Em um filme que tem uma narrativa fria, distante, distanciada, gélida, Melville se permite uma seqüência que, na minha opinião, é uma das mais fantásticas jamais feitas sobre o vício do álcool.

A vida inteira, ouvimos dizer que, no momento sem a droga, no delirium tremens, no cold turkey, vemos bichos. Lagartos, ratos, aranhas – tudo subindo em direção a nós.

Melville bota tudo isso em cena.

É apavorante.

Escolha a cena que mais o apavorou no cinema. A cena do chuveiro em Psicose. A cena de Jack Nicholson arrebetando a porta com o machado em O Iluminado. A cena do rato aparecendo na parede da casa do bêbado em Farrapo Humano.

Pois a cena do bêbado neste filme aqui é tão apavorante quanto essas aí. Bichos de todas as espécies – lagartos, jacarés, ratos, aranhas – sobem na cama em que tenta se esconder Jansen, o personagem interpretado por Yves Montand.

Por que ele, que foi um policial condecorado, virou um alcoólatra? Não se sabe. Ele dirá, numa determinada hora, que é uma história comprida – e só isso.

E por que raios um alcoólatra em delirium tremens, na pior, de repente, não mais que de repente, fica sóbrio?

Ah, cara, aí é um pouquinho de licença poética. Não sejamos idiotas da objetividade.

E, aliás, que extraordinariamente bela a cena em que ele cheira a cachaça, sabendo que não pode bebê-la.

         “Paisagens embaçadas, onde perambulam marionetes sem alma”

Vou atrás de outras opiniões.

O Guide des Films de Jean Tulard dá 3 estrelas em 4. Ele transcreve a frase sobre Buda e o círculo vermelho, e diz que é um filme soberbo sobre a fatalidade. “Somente Melville poderia recriar esse universo estranho, de imagens irreais, de paisagens embaçadas, onde perambulam marionetes sem alma. Perdoamos o autor por algumas fraquezas, como as cenas de Montad em crise, ou a interminável seqüência do assalto, se bem que tecnicamente perfeita. Foi a segunda colaboração de dois gigantes, Melville e Delon, que provam ter uma grande cumplicidade.”

O outro filme de Melville com Delon é O Samurai, de 1967, em que o ator interpreta um matador de aluguel.

A crítica ao filme no AllMovie, assinada por Mark Deming, é bastante elogiosa – e informativa. Conta que o filme foi exibido nos Estados Unidos numa versão cortada, sem 40 minutos do original; apenas em 2002 saiu lá na versão integral.

Alguns trechos: “Parte da genialidade de Jean-Pierre Melville é que ele era capaz de pegar os elementos formais do filme policial e colocar neles um selo absolutamente individual – seus melhores filmes pegam elementos de mil thrillers classe B e investem neles com uma inteligência singular e uma calma suave. (…) Le Cercle Rouge se revela como um filme cujo toque sutil apenas adiciona à tensão e ao suspense que gera – uma lição valiosa para os diretores que acreditam que a função de filmes do gênero é esbofetear o espectador.”

         Um motivo pessoal para respeitar Jean-Pierre Melville

Respeitei e admirei o filme de Melville por diversos motivos. O principal deles é o fato de que é uma bela obra, e tem um estilo pessoal, único. Mas não me envergonho em admitir que, embora conheça muito pouco da obra do diretor, tenho por ele uma grande simpatia. Por um motivo claro: Jean-Pierre Melville foi o único cineasta francês que foi fiel, leal, amigo de Claude Lelouch. Todos os grandes cineastas franceses dos anos 60, identificados ou não com a nouvelle vague, sempre trataram Lelouch como um pária – menos Melville. Entre todos, Melville foi o único sujeito que se mostrou amigo de Lelouch.

Sei que isso não tem, a rigor, nada a ver com o cinema em si – tem só a ver com caráter.

Verdade. Tem a ver com caráter A questão é que caráter é tudo.

O Círculo Vermelho/Le Cercle Rouge

De Jean-Pierre Melville, França-Itália, 1970

Com Alain Delon (Corey), Bourvil (comissário Mattei), Gian Maria Volonté (Vogel), Yves Montand (Jansen), Paul Crauchet (o receptador),  Paul Amiot (o inspetor-geral da polícia)

 Argumento e roteiro Jean-Pierre Melville

Fotografia Henri Decaë

Música Éric Demarsan

Produção Euro International Film, Les Films Corona, Selenia Cinematografica. DVD CinemaX

Cor, 135 min (o Cinéguide fala 140 min)

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