Kansas City

Nota: ★★★☆

Anotação em 2010 (postada em janeiro de 2011): É certo que Robert Altman não via mesmo com bons olhos o estado geral das coisas em seu país. Mas, cacildabecker, quando fez Kansas City, em 1996, ele estava mais indignado, mais furioso do que nunca.

É um panorama absolutamente sombrio, sem saída: só existe violência, violência, violência, corrupção, o poder do dinheiro, injustiça social, preconceito, droga, vício, impunidade, insensatez.

Pode até haver filmes tão pessimistas sobre a sociedade americana quanto Kansas City. Talvez Caçada Humana/The Chase, de Arthur Penn, Nos Tempos do Ragtime/Ragtime, de Milos Forman, Era uma Vez na América, de Sérgio Leone. Agora, mais negativo, mais pessimista do que este aqui, acho que não há. Não existe como.

Muitos filmes de Altman são, mas Kansas City, sobretudo, é um tour de force. É um tour de force até exagerado. Tudo se passa ao longo de dois dias – a véspera de uma eleição municipal, nos anos 30, o país afundado na Grande Depressão, e o dia da eleição. Como quase sempre, o cineasta apresenta um grande número de personagens, um mosaico de gente cujas vidas se cruzam. A primeira meia hora, em especial, tem um ritmo tão ágil, tão rápido, é tudo tão insensato – e o roteiro dá umas subvertidas na ordem cronológica –, que o espectador fica zonzo. Sei lá – eu pelo menos fiquei, ao rever o filme agora; tinha visto só uma vez, no cinema, em 1997, e me lembro vagamente de ter saído meio zonzo do cinema.

E é tudo tão absolutamente negror do negror, beco sem saída, que, na meia hora final, eu já estava cansado – com uma exaustão quase comparável à de Carolyn Stilton (Miranda Richardson), depois de ser arrastada pelos mais diversos lugares de Kansas City por Blondie (Jennifer Jason Leigh) ao longo de quase dois dias inteiros.

         Uma mulher rica e drogada, uma mulher pobre e desesperada

É assim: logo na abertura, na primeira seqüência do filme, Blondie chega à mansão de Carolyn dizendo que veio fazer as unhas dela no lugar de Babe (Brooke Smith), sua irmã, que não pôde vir. Carolyn é uma drogada total, está no fundo do poço, e pede à desconhecida Blondie o que Babe deveria ter trazido para ela. Blondie entrega a droga – e exibe um revólver.

Naquela véspera de eleição, tinha chegado à cidade Sheepshan Red (A.C. Tony Smith), um negro ricaço, para jogar no Hey Hey Club, um antro que tem na fachada um bar de jazz para esconder um cassino. O Hey Hey Club pertence a Seldom Seen (Harry Belafonte), um gângster falastrão, que adora o som de sua própria voz; um de seus motoristas, Blue (Martin Martin), vai pegar Sheepshan na estação, mas, no trajeto da estação até o clube, o carro é convenientemente parado por um negro armado que leva toda a grana – e era muita grana – do ricaço jogador.

Seldom, malandro escolado, desconfia de imediato que seu motorista Blue tem participação no assalto. E traços de fuligem deixados na roupa do assaltado Seepshan dão a dica de que o assaltante era um branco se fingindo de negro. Kansas City nos anos 30 não era propriamente uma metrópole, os malandros conheciam os outros malandros, e Johnny O’Hara (Dermot Mulroney) ainda estava tirando a fuligem preta do rosto quando é pego em sua casa pelos capangas de Seldom.

Johnny é a grande paixão da vida de Blondie. Sua irmã Babe costuma fazer as unhas de Carolyn Stilton, mulher de um grande chefão político da cidade, Henry Stilton (Michael Murphy) – e, além de manicure, é também a fornecedora de drogas para madame. Tão apaixonada, irresponsável e insana quanto rápida, Blondie surge então na mansão dos Stilton, se apodera de Carolyn e propõe a troca ao figurão: ele que dê um jeito de tirar seu Johnny da mão dos bandidos negros, e então ela solta Carolyn.

É essa enxurrada de fatos e personagens – mais vários outros adjacentes, que deixei de fora – que Altman entrega ao espectador nos primeiros 20 frenéticos primeiros minutos de Kansas City. A partir daí a trama vai se enrolando mais – e as seqüências de ação são sempre intercaladas por outras em que um grupo de músicos toca jazz no Hey Hey Club. Naquele dia exato – inventa o roteirista Altman – estavam em visita ao Hey Hey Club os lendários músicos de jazz Lester Young e Coleman Hawkins. Ficam ali os dois duelando, com diversos músicos atrás e juntos deles, a noite inteira, a madrugada inteira.

O jazz vai pontuando as seqüências que vão enrolando mais e mais a trama.

Às vezes dá a sensação de que é o contrário, de que na verdade o filme é uma apresentação de um bando de bons músicos de jazz, interrompida aqui e ali por uma trama que vai se enrolando mais e mais.

         Uma época em que Altman e a bilheteria tinham voltado a se dar bem

Kansas City é de 1996, ou seja, veio depois que Altman deu uma fantástica volta por cima e, a partir de O Jogador/The Player, de 1992 – uma belíssima ciranda em volta de personagens do mundo do cinema de Hollywood –, obteve de novo o reconhecimento unânime da crítica e o tilintar das bilheterias como um dos maiores nomes do cinema americano.

Nos anos 80, depois de Popeye – maravilha de filme, que merece ser relançado e revisto, mas imenso fracasso de bilheteria –, Altman enfrentou uma fase em que os estúdios não queriam saber dele. Grande artista, deu aula de cinema na Universidade de Michigam, e continuou a fazer bons filmes, como O Exército Inútil/Streamers, de 1983, e Honra Secreta/Secret Honor, de 1984 – dois filmes baseados em peças de teatro, tão fortes quanto difíceis, indigestos para a maioria dos espectadores. E foi só com O Jogador que fez as pazes com o sucesso, com a bilheteria.

Logo depois vieram Short Cuts – Cenas da Vida, de 1993, também aclamadíssimo, um mosaico sobre a vida em Los Angeles, e Prêt-à-Porter, de 1994, outro mosaico, desta vez sobre o mundo da moda. O filme seguinte foi Kansas City.

         Duas ótimas atrizes em grandes interpretações

Ele já havia dirigido Jennifer Jason Leigh em Short Cuts, em que ela está excelente como a mãe de família que cuida dos filhos enquanto trabalha como telefonista de sexo. Em Kansas City, outra história de muitos personagens, ela é a protagonista.

Que maravilhosa atriz é essa garota, e que beleza a interpretação dela neste filme. Blondie, sua personagem, obviamente vem de família muito pobre; teve um pouco de estudo – o suficiente para trabalhar no escritório local da Western Union, como telegrafista –, mas não muito. Vive fascinada com as celebridades, sobre quem lê nas revistas populares; seu modelo na vida é Jean Harlow, a loura platinada de Hollywood. Daí seu apelido, Blondie, lourinha – usa água oxigenada barata para pintar os cabelos castanho-escuros de louro quase branco, embora isso faça seu cabelo cair. Teve filho aos 17 anos, que entregou para adoção imediatamente após o nascimento. Sua paixão imensa é por um bandidinho de quinta categoria.

O acaso fará com que essa jovem mulher tão vazia, fútil, infeliz, se encontre com Carolyn Stilton, que é ao mesmo tempo o oposto dela e muito próxima de sua miséria. Carolyn é rica, casou-se com político influente, poderoso, mas não tem vida própria, vive enfurnada em sua mansão consumindo droga e se consumindo. É tão vazia, fútil e infeliz quanto a jovem pobre que a seqüestra.

A inglesa Miranda Richardson tem uma atuação tão brilhante quanto a da americana de Los Angeles Jennifer Jason Leigh. Ao longo das quase 48 tempestuosas horas em que passa em poder de sua seqüestradora, aquele traste ambulante passa por vários estados. Vai da quase catatonia provocada pela droga que vai consumindo o tempo todo até um estado um pouco mais próximo da lucidez, durante o qual parece estar enxergando o mundo pela primeira vez.

         No filme que Blondie vê no cinema, o espelho de sua própria vida

O cinema adora o cinema. Enquanto esperam por alguma notícia do figurão Stilton, Blondie leva Carolyn ao cinema em que está passando Hold your Man, com Jean Harlow, é claro, e Clark Gable – Hold your Man, no Brasil Amar e ser Amada, dirigido por Sam Wood, 1933. No filme – metalinguagem é isso aí –, a garota Ruby, interpretada por Jean Harlow, se apaixona perdidamente por um gangsterzinho de quinta, exatamente como a própria Blondie. Ao saírem do cinema, Blondie derrete-se em elogios a Jean Harlow. Carolyn, que considerava cinema uma coisa menor, provavelmente uma distração para pobres, diz que a atriz parece cheap – barata, vulgar.

As equipes do figurino e da maquiagem fizeram um trabalho soberbo com as duas atrizes, que se soma ao talento interpretativo delas próprias. O contraste é chocante – Carolyn é elegante, com belas roupas, Blondie se veste de forma displicente, quase desmazelada. Exagera demais na maquiagem – seu rosto se esconde atrás de uma placa de cremes e pós. Carolyn, ao contrário, é maquiada para parecer que não tem maquiagem – mostra uma palidez doentia; seus gestos são lentos, enquanto os de Blondie são nervosos, ágeis, à beira de um ataque de nervos. Na maior parte do tempo, o rosto de Carolyn expressa a inexpressividade de uma drogada, enquanto o de Blondie se remexe em caretas o tempo todo. Durante alguns momentos, achei que Jennifer Jason Leigh cometia o pecado mortal de exagerar nas caretas; em seguida me caiu a ficha, e percebi que quem faz caretas não é a atriz, mas o personagem. E não são propriamente caretas, são tiques nervosos.

         Um ser humano extraordinário interpretando um tipo abjeto

O terceiro grande ator – terceiro grande personagem – é Harry Belafonte. Não vou falar de Belafonte, porque não dá para tentar resumir Belafonte em poucos parágrafos. O incrível é Altman ter colocado Harry Belafonte – uma criatura em tudo extraordinária, um daqueles homens imprescindíveis de que fala o poema de Brecht – para fazer Seldom Seen, uma figura absolutamente abjeta, repulsiva, nojenta.

Não há sequer um bom caráter, entre todos os personagens principais dessa história de violência e insanidade, ninguém admirável, ninguém simpático, ninguém com quem a gente gostaria de, numa tarde agradável, tomar um chope e bater papo furado. Mas Blondie e Carolyn não chegam propriamente a ser más pessoas – são apenas seres fracos, mesquinhos, vazios, desprezíveis.

Já Seldom Seen é a representação do mal em si. É um gângster, manda matar gente, explora o vício dos outros, é ele próprio viciado (cheira cocaína o tempo todo), é um sádico, mas, sobretudo, peca pela soberba. Uma espécie assim de Lula de Kansas City, se acha a melhor coisa que já pisou na face da Terra, e adora ouvir o som de sua própria voz – e os capangas que prestem atenção e riam de suas piadas sem graça. (O apelido dele já é uma grande ironia – raramente visto.)

Ah, sim, e o filme ainda trata da política, de eleições. É tudo uma imensa sujeira, uma podridão. É tudo corrupto – e não há qualquer saída possível.

Tristes personagens. Triste mundo.

         Um fracasso de público e crítica

Ao contrário de muitos dos filmes de Altman, Kansas City não teve muitos prêmios e indicações. Não teve nenhuma indicação ao Oscar ou ao Globo de Ouro. Foi escolhido para a mostra competitiva no Festival de Cannes, mas não levou nada.

Leonard Maltin deu 2 estrelas em 4. “Um monte de sabor, mas nenhuma substância e uma trama redundante. A melhor parte: o jazz, que é tocado quase continuamente (em geral não mostrado pela câmara) por um conjunto de grandes astros que inclui Nicholas Playton, Joshua Redman, Mark Whitfield, Christian McBride, Cyrus Chestnut e Ron Carter.”

No Guide des Films de Jean Tular, encontro uma sinopse precisa, de uma única frase: “Em Kansas City, em 1934, Blondie, para libertar seu marido prisioneiro do chefe de uma gang negro, seqüestra a esposa de um político influente.”

Ah, que inveja de quem consegue resumir em tão poucas palavras o cerne de uma trama. Jamais vou conseguir fazer isso.

Os verbetes do guia de Tulard são sempre assim: uma sinopse da trama, e em seguida uma avaliação crítica. Os franceses do guia também não gostaram do filme: “Este filme de gângsteres é um pretexto para prestar uma homenagem ao jazz. E a verdade é que é a parte do filme que funciona. Porque o filme em si é traído por uma interpretação exagerada, e uma reconstituição onde se sente o cheiro do estúdio. O filme foi um fracasso comercial.”

Cada cabeça, uma sentença. Não acho as interpretações exageradas, e acho a reconstituição de época brilhante. Cada cabeça, uma sentença.

Agora, que foi um imenso fracasso comercial, isso é fato, não há como discutir. Segundo o Box Office Mojo, o filme rendeu ridículos US$ 1,3 milhão. Isso não dá para pagar nem o que se gastou de energia elétrica para fazer o filme.

O que comprova que a carreira de Altman, em termo de sucesso comercial, foi realmente uma montanha russa. Ele esteve no topo do bilheteria com M.A.S.H., de 1970, e teve sucessos nos anos 70, para mergulhar num limbo, comercialmente falando, nos anos 80; com O Jogador, em 1992, voltou a se dar bem na bilheteria, como já se disse aqui. Depois afundou de novo.

O que não afundava nunca era seu talento. Fracassos ou sucessos na bilheteria, seus filmes são sempre bons – quando não ótimos, extraordinários. Mesmo este aqui, retrato do negror do negror do negror.

Kansas City

De Robert Altman, EUA-França, 1996

Com Jennifer Jason Leigh (Blondie O’Hara), Miranda Richardson (Carolyn Stilton), Harry Belafonte (Seldom Seen), Michael Murphy (Henry Stilton), Dermot Mulroney (Johnny O’Hara), Steve Buscemi (Johnny Flynn), Brooke Smith (Babe Flynn), Jane Adams (Nettie Bolt), Jeff Feringa (Addie Parker), A.C. Tony Smith (Sheepshan Red), Martin Martin (Blue), Ajia Mignon Johnson (Pearl Cummings)

Fotografia Oliver Stapleton

Produção CiBy 2000, Sandcastle 5 Productions. DVD Editora Europa

Cor, 118 min

R, ***

5 Comentários para “Kansas City”

Comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *