Juventude

Nota: ★★★½

Anotação em 2011: É uma absoluta delícia este Juventude, o filme sobre o reencontro de três amigos velhinhos que Domingos Oliveira fez em 2008, aos 72 anos de idade. Uma bem humorada, inteligente, verborrágica – quantas palavras, meu Deus do céu e também da terra – homenagem à vida, aos prazeres, à passagem do tempo, à amizade, ao amor, às mulheres, a todas as mulheres do mundo, e, por que não?, às lembranças da juventude.

Ah, a juventude. Quando Domingos Oliveira dirigiu Paulo José em Todas as Mulheres do Mundo, em 1966 (o filme seria lançado no ano seguinte), o autor e diretor tinha 30 anos de idade, e o ator, 29. Um ano mais novo que Domingos, Paulo José estava portanto com 71 anos quando fez Juventude. O terceiro ator era um jovem de apenas 67 – embora Aderbal Freire Filho não tenha propriamente uma carreira como ator, e sim como diretor de teatro, um dos nomes mais respeitados da área no país. Como Dib Lufti, o diretor de fotografia, nome histórico do cinema brasileiro, tem a mesma idade de Domingos, temos aí, entre os quatro, 282 anos de vida, média de 70.

Era mesmo a hora de se reunirem para fazer uma ode à vida com o título maroto de Juventude.

Juventude é assim:

(Quer dizer: o filme, é claro, porque a coisa em si, aquela doença que o tempo cura, essa nem sei mais como é.)

Em um fim de semana, David (o papel de Paulo José) recebe em sua imensa, esplendorosa casa na serra, em Petrópolis, os velhos amigos Antônio (Domingos Oliveira) e Ulisses (Aderbal Freire Filho). Conhecem-se desde os tempos da adolescência.

David batalhou muito na vida, desde cedo; fez engenharia e, por algum motivo que não é explicitado, ficou rico. Está casado desde sempre com Giovanna, tem um filho adulto, resolvido – mas teve uma gigantesca paixão por Dudu. E terá novidades para contar aos amigos sobre esta última.

Ulisses é médico, cardiologista; a família é do Paraná, mas ele estudou no Rio na juventude, e agora trabalha num hospital público pobre de São Gonçalo e recebe um salário ridículo. É mulherengo, teve mil casos, mas entre eles uma grande paixão, uma alemã descomunal de Curitiba, com quem teve uma filha, a qual namora um traficante e está viciada em heroína, precisando de um tratamento que vai requerer rios de dinheiro.

Ao longo de um dia e uma noite inteiros, os três vão beber e falar, falar, falar

Antônio é Domingos Oliveira – todos os personagens que Domingos Oliveira interpreta são ele próprio, assim como os de Woody Allen são todos alter-egos de Woody Allen. Antônio, diretor de teatro e de cinema, escritor, dramaturgo, teve mil amores, e depois um grande, imenso amor, Pink. Pink e ele se perderam poucos anos antes, e há dois anos ele está com Eugênia, garota de 20 anos, que baba por ele como Tracey, a garota interpretada por Mariel Hemingway em Manhattan, baba por Isaac Davies, o alter-ego da vez de Woody Allen.

Ao longo de um dia e uma noite inteiros, os três vão beber bastante, tomar uma sauna, cear – mas, sobretudo, vão conversar. Falam demais, os personagens de Domingos Oliveira, de novo como os de Woody Allen. São, todos os personagens de Domingos Oliveira, assim como os de Allen e muitos dos de François Truffaut, classe média urbana, leve ou altamente intelectualizados, leve ou altamente deslocados na sociedade competitiva, às vezes sem uma atividade profissional muito definida, sonhando em realizar uma grande obra que nunca sai.

Já Domingos Oliveira, o próprio, esse não precisa sonhar. Realizou a mais bela obra que se poderia imaginar quando tinha apenas 30 anos, e depois manteve uma magnífica carreira como diretor de teatro, autor, roteirista e diretor de filmes – todos personalíssimos, todos bons, todos com grandes discussões filosófico-botiquineiras sobre a vida o amor a morte.

O Credo de um artista quando maduro

Palavras, palavras, palavras. Da boca de Antônio, Ulisses e David jorram palavras como de Rosalind Russell e Cary Grant em Jejum de Amor/His Girl Friday, de Howard Hawks, como água das cataratas do Iguaçu

Na abertura do filme – uma série de planos dos três amigos andando por jardins em torno da bela casa de montanha –, a voz em off de Domingos Oliveira despeja, manda ver:

– “Eu acredito em muitas coisas. Acreditei que o bem sempre venceria o mal. Lembro da minha mãe me acordando, as lágrimas dela rolando, para que eu comemorasse a derrota dos nazistas e o armistício. Acreditei em Freud e na psicanálise; se eu tivesse coragem, eu chegaria ao auto-conhecimento e seria feliz. Acreditei em Marx e na revolução. Se eu tivesse bastante coragem, eu poderia ajudar o mundo a alcançar a justiça social. Acreditei também em muitas outras coisas. Na dignidade, na honra, na inocência, na sabedoria, na razão, na intuição, na ciência e nas artes. Ah, sim, e acreditei mais do que tudo no amor eterno, no amor único, nas forças da paixão segundo Vinicius de Moraes. Acredito até hoje que quando os corpos dos amantes se unem a terra treme. Esta é a minha história, e a história da minha geração. Nós somos aqueles que viveram e sobreviveram a muitos ideais. Aqueles que viram a falência das soluções libertadoras. As que prometiam resolver o próprio enigma da existência humana. Nós somos os que vimos as falências das soluções. Não estou me queixando, não – não me queixo. O melhor é ter ideais, nem que seja para perdê-los – e sair procurando outros.”

Uau, meu!

Gostaria de ter escrito isso. Se tivesse escrito isso, não precisaria escrever mais nada na vida.

“O tempo passa como um rato na sala”

Juventude é todo pontuado por belos textos. Como sempre acreditei, e continuo acreditando, no Belo Texto, sou fiel praticante dessa igreja, transcrevo alguns:

– “Existem três idades: a juventude, a maturidade e o você está ótimo.”

– “Se fôssemos homens do século XIX já estaríamos mortos há muito tempo. Nós somos fantasmas modernos.”

– “É comovente o grau de saúde com que nós três reclamamos da saúde.”

– “Mulher com ciúme não distingue beijo de trepada.”

– “Não adianta lutar: a libido morre bem depois da esperança.”

– “O tempo passa como um rato na sala.”

Três cariocas vestidos como se estivessem na Suécia

Um pequeno detalhinho mínimo, mas que acho interessante:

Domingos Oliveira é um sujeito elegante. Tudo bem, ele é elegante em vários níveis. Mas aqui quero dizer elegante naquela área que menos importa, a de se vestir bem.

Uma vez alguém falou, comentando sobre Coração Satânico/Angel Heart, o belíssimo, aterrorizante, perturbador filme de Alan Parker, que Mickey Rourke é um sujeito naturalmente deselegante: se vestir o melhor Armani, aparecerá tosco, amassado, amarfanhado, troncho. Sempre me identifiquei com essa definição: se por acaso me pusessem dentro de um Armani, eu pareceria saído do pior alfaiate da Zé Paulino – que nem Mickey Rourke.

Domingos Oliveira – elegantérrimo no texto, na visão de mundo, na forma como faz seus filmes – é também elegante na forma de se vestir. Ao contrário de mim, tudo que ele veste lhe cai bem.

Esses parágrafos acima escondem uma verdade engraçada: os personagens de Juventude se vestem como se vivessem nas áreas do planeta em que faz frio. O que é estranhíssimo, porque no Rio de Janeiro, como todos sabemos, faz um calor do cão.

Tudo bem: a ação se passa em Petrópolis, a serra fluminense. No inverno, nos dias mais frios do inverno, pode ser que em Petrópolis a temperatura caia para gélidos – o quê? – 15 graus?

Quando, no verão mais tórrido, faz 15 graus na Finlândia, nego vai pras praças tomar sol.

Mas, convenhamos, no Brasil, 14 graus dá pra se enfrentar com uma blusa de algodão em cima de uma camiseta.

Não para Domingos Oliveira, sujeito elegante.

Os velhinhos de Juventude usam coletes, paletós de lã, cachecóis.

Um cinema pessoal, autoral, independente dos patrocínios oficiais

É fantástico, é sensacional: assim como os portenhos se acham ingleses melhorados, os personagens de Domingos Oliveira se acham quase finlandeses. Quase suecos. Domingos Oliveira – não tem jeito – namora um clima Bergman.

Acho isso o maior barato.

Daria até para aproveitar e falar em Walter Hugo Khoury. Domingos e Khoury têm imensas semelhanças, além de, é claro, imensas desparenças – afinal, um é carioca, o outro é paulista, e não pode haver diferença maior. Mas são possivelmente os cineastas brasileiros mais pessoais, mais personalisticamente fiéis a seu próprio estilo, donos de obras autorais, e que, num país pobre, em que produzir filmes depende em boa parte da disposição do governo de plantão, mantiveram sempre uma independência inimaginável, invejável.

Mas nem acho que isso seja necessário. Em parte, porque é óbvio. Em parte, porque dá preguiça de, numa anotação sobre um filme tão belo, falar de coisas tristes, como o aparelhamento do cinema brasileiro pelo governo lulo-petista.

“Pode-se lá ter vivido sem ter jamais amado alguém?”

Juventude é uma grande brincadeira sobre coisas sérias – a começar do próprio cinema. Bem no início da narrativa, David, o anfitrião, prepara uma câmara e a coloca diante de si próprio; senta-se, então, e começa a falar para ela. Uma brincadeira com a metalinguagem – é como se Juventude fosse um filme dentro do filme, um filme caseiro feito pelos três amigos durante o fim de semana. Nos créditos finais, aparecerão fotos de toda a equipe, as câmaras e refletores à mostra.

Boa parte dos 72 minutos do filme é feita em câmara de mão, de fato como um filme caseiro, artesanal – mas, ao contrário do que acontece em filmes do povo chato do Dogma 95 dinamarquês, a câmara não deixa o espectador tonto, zonzo. O cameraman tem braços firmes.

Mas a maior brincadeira é com A Ceia dos Cardeais. Quando bem jovens, no colégio, os três amigos haviam encenado A Ceia dos Cardeais. Em uma viagem a Paris, David, o rico, havia encontrado uma velha edição ilustrada de A Ceia dos Cardeais, que mostra, todo feliz, aos outros dois. Antônio comenta que hoje em dia ninguém sabe o que é A Ceia dos Cardeais. Haverá depois quase uma encenação de A Ceia dos Cardeais, numa bela sequência em que aparecerão crianças.

Sou uns poucos anos mais novo que Domingos Oliveira, mas, sim, sei o que é A Ceia dos Cardeais, por um motivo prosaico: minha mãe costumava recitar para mim uns versinhos do floreado texto do português Julio Dantas (1876-1962), que decorei e sei até hoje, como o intertítulo acima. Minha mãe não era pessoa de gosto literário muito apurado.

E então fecho esta anotação com outra das grandes tiradas do filme. Esta é dita pela voz em off de Paulo José, ainda linda, já não tão poderosa e firme, mas sempre expressiva, emocionante:

– “Dizem que os velhos é que são sábios, espiritualizados. Mentira pura. Os velhos é que sentem o corpo o tempo todo, doendo aqui, doendo ali. Portanto, são eles os materialistas. Os jovens não sentem nunca o corpo, são pura alma. O corpo é a alma.”

Grande Domingos Oliveira!

Juventude

De Domingos Oliveira, Brasil, 2008

Com Domingos Oliveira (Antônio), Paulo José (David), Aderbal Freire Filho (Ulisses)

Argumento e roteiro Domingos Oliveira

Colaboração no roteiro Márcia Zanelato

Fotografia Dib Lufti

Montagem Natara Ney

Produção Forte Filmes, Synapse, Teatro Ilustre Produções Cinematográficas

Distributors

Cor, 72 min

***1/2

11 Comentários para “Juventude”

  1. Aimm, Sérgio, não consigo enfrentar 15 graus só com camiseta e blusa de algodão, não. Se até no cinema eu uso um casaquinho(do contrário, congelo de frio e não consigo prestar atenção no filme). Com 23 graus eu já coloco jaqueta. Tudo bem que usar lã e cachecol é um pouco demais, mas não acho 15 graus quente, não. São 30 graus a menos ao que estou acostumada (estou ficando velha e friorenta, eu não era assim nos meus 13 anos!).
    Adorei o texto, nem vou precisar ver o filme.

  2. Eu, ao contrário de você, que é de Cuiabá, fico cada vez mais incomodado com o calor, doido pra chegar o inverno.
    Mas, Jussara, veja, sim, este filme. Merece. Você vai gostar.
    Um abraço.
    Sérgio

  3. Valéria, que coisa boa saber que você leu o post e gostou.
    Adorei receber mensagem sua no site.
    Um grande abraço.
    Sèrgio

  4. Vi o filme em DVD e gostei muito. E a crítica do Sergio Vaz foi a mais interessante das que li.
    Luiz Cesar

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