Jogo de Poder / Fair Game

Nota: ★★★½

Anotação em 2011: Alguém escreveu que o tema de Jogo de Poder já está um tanto batido, surrado. Todo mundo tem direito à sua opinião, e seguramente a pessoa que escreveu isso tem direito a expressá-la, assim como eu tenho o direito de dizer que é uma opinião idiota.

Jogo de Poder é um grande filme, uma beleza, uma obra feita com muito talento, convicção e garra. Conta uma história real, recente, e tremendamente importante, que demonstra, tintim por tintim, que o governo George W. Bush mentiu ao país e ao mundo para justificar a invasão do Iraque em 2003.

Dizer que esse tema é um tanto batido, surrado, é uma imbecilidade.

Fazem-se hoje filmes que mostram os crimes do nazismo, ou os crimes do apartheid da África do Sul, ou do racismo oficializado do Sul dos Estados Unidos – e, desde que eles sejam bons, que maravilha, que sejam bem-vindos sempre, que se façam mais e mais bons filmes que não nos deixem esquecer jamais os crimes do nazismo, ou do apartheid da África do Sul, ou do racismo oficializado do Sul dos Estados Unidos, como, de resto, de qualquer racismo.

Uma agente de operações secretas, um embaixador – e a mentira de Bush

Valerie Plame (maravilhosamente interpretada por Naomi Watts) era uma experiente, competente e fiel agente da CIA, a Central Intelligence Agency, a agência de espionagem americana. A ação do filme se inicia em 2001, logo após os mais violentos e mortíferos ataques terroristas da história da humanidade, os que destruíram as Torres Gêmeas em Nova York e atingiram o prédio do Pentágono, em Washington, em 11 de setembro. Em 2001, Valerie já era uma veterana covert agent – agente de operações secretas, que se fazia passar por funcionária de uma empresa privada. Somente o marido e os pais sabiam de seu verdadeiro trabalho.

Trabalhava na gigantesca máquina de inteligência do Império na seção encarregada da contraproliferação do terrorismo; era especializada exatamente em WMD, a sigla em inglês para armas de destruição em massa, weapons of mass destruction. Tinha contatos em diversos países do Oriente, da Oceania – as primeiras seqüências do filme a mostram em ação em Kuala Lumpur, na Malásia.

Valerie era casada com um diplomata extremamente experiente, Joseph Wilson IV (o papel de Sean Penn), já fora do serviço público, trabalhando por conta própria.

A Casa Branca – o governo de Bush e do vice, Dick Cheney – apresentou ao país o que dizia serem as provas de que Saddam Hussein, o ditador do Iraque que no passado havia sido apoiado pelos Estados Unidos, desenvolvia um programa nuclear que estava bem perto da fabricação da bomba atômica, e, além disso, possuía amplas reservas de armas químicas, as WMD. Como comprovação disso, dizia ter provas de que o Iraque havia importado 500 toneladas de yellowcake de Níger.

As informações da CIA, da seção de Valerie, não corroboravam com as argumentações da Casa Branca. Ou seja: o próprio serviço de inteligência, de espionagem do governo não possuía informações que confirmassem o que a Casa Branca dizia. Ao contrário.

A CIA resolveu, então, convidar Joe Wilson para ir a Níger, para obter informações in loco; o diplomata conhecia bem o país, havia sido embaixador lá, tinha contatos com ex-ministros.

Joe Wilson viaja a Níger – e volta com um relato bem fundamentado que demonstra por A mais B que não houve a suposta venda de 500 toneladas de urânio trabalhado para o Iraque do ditador Saddam.

Paralelamente, Valerie usa seus contatos, e consegue obter informações diretamente com os principais cientistas que haviam sido os responsáveis pelo programa nuclear do Iraque. As informações mostram simplesmente o seguinte: não havia mais programa nuclear sendo desenvolvido no Iraque em 2001, 2002: todas as instalações relacionadas com o programa nuclear iraquiano haviam sido destruídas na guerra EUA de Bush x Iraque volume I, aquela levada a cabo por Bush pai, em 1990, após a invasão do Kwait pelas tropas de Saddam.

Ou seja: a CIA sabia que Bush estava mentindo aos seus eleitores, ao seu país e ao mundo quando, no seu discurso do State of the Union no Congresso, anunciou os motivos pelos quais, pouco depois, resolveria – passando por cima da verdade dos fatos, e do Conselho de Segurança da ONU – atacar e invadir o Iraque, em março de 2003.

A Casa Branca contra um casal

Valerie Plame sabia que Bush e Chenney estavam mentindo. Seu marido sabia que Bush e Chenney estavam mentindo. Mas Valerie era uma fiel empregada da CIA, e Joe Wilson, já fora do Departamento de Estado, era livre, independente. Joe escreveu um artigo publicado no New York Times demonstrando que era mentira a compra, pelo Iraque, das tais 500 toneladas de Yellowcake.

Foi a primeira comprovação, preto no branco, da mentira de Bush-Chenney.

No dia seguinte, um colunista da direita, agindo por instrução do gabinete de Dick Cheney, publicou um artigo que tentava destruir a reputação, a credibilidade de Joe Wilson, dizendo que ele era casado com uma agente secreta.

Revelar a identidade de uma agente secreta é crime. Conhecer a identidade de uma agente secreta é privilégio de poucas pessoas do próprio governo.

Para Valerie Plame, foi a ruína, o fim da carreira, o início do inferno.

Fatos recentes, importantíssimos, relevantíssimos

A revelação da identidade de Valerie Plame aconteceu em 2003. Míseros oito anos atrás.

Investigações abertas no Congresso americano levaram à condenação dos assessores da quadrilha Bush-Chenney que inventaram a mentira das armas de destruição em massa e depois criaram a campanha difamatória contra Joe Wilson e Valerie Plame. Usando seus poderes presidenciais, Bush, antes de deixar o governo (e deixar os Estados Unidos chafurdando em sua maior crise econômica desde a quebra da Bolsa de Nova York em 1929), anistiou os criminosos.

Tudo isso, todos esses fatos importantíssimos, relevantíssimos, estão mostrados no filme – e há gente que diz que o tema é batido, surrado.

Tudo bem: todo mundo tem o direito de dizer o que bem entender. Bush, por exemplo, usou mentiras para fazer sua guerra ao Iraque.

E que não se depreenda disso que vai aqui qualquer tipo de defesa de Saddam Hussein.

Aliás, em duas seqüências, o filme mostra muito bem sua posição em relação a Saddam Hussein. Em uma discussão entre amigos de família, Joe Wilson questiona duramente um sujeito que fala que Saddam Hussein é uma ameaça aos Estados Unidos. Pouco depois, o mesmo Joe Wilson demonstra como e por que Saddam Hussein é um ditador sanguinário, pavoroso, sem nada que possa ser defensável.

O fato de ser um ditador sanguinário, pavoroso, em nada defensável, no entanto, jamais poderia justificar a invadir o Iraque sob o argumento – mentiroso – de que o país estava cheio de armas atômicas e de destruição de massas preparadas para serem lançadas contra o Ocidente.

Maravilhoso seria se fizessem mais 300 bons filmes sobre as mentiras de Bush-Cheney

Dois belos filmes já haviam abordado as questões mostradas neste Jogo de Poder/Fair Game. Zona Verde/Green Zone, de Paul Greengrass (o mesmo diretor que recriou os acontecimentos dentro de um dos aviões tomados pelos terroristas árabes nos ataques coordenados de 11 de setembro de 2001, em Vôo United 93), mostra como um oficial especializado das forças armadas americanas, interpretado por Matt Damon, enviado ao Iraque para localizar as tais armas de destruição em massa logo após a invasão, vai percebendo que não há o menor sinal delas. Que as WMD eram uma invenção da dupla Bush-Channey para justificar a invasão, e nada mais que isso – e o oficial denuncia o fato aos grandes jornais e redes de TV.

Zona Verde é de 2010, o mesmo ano deste Jogo de Poder. Dois anos antes, em Faces da Verdade/Nothing But the Truth, o diretor Rod Lurie, experiente em tramas políticas, havia mostrado, em uma história fictícia, um pouco dos acontecimentos reais da vida de Valerie Plame. Uma personagem semelhante a Valeria aparece no filme, interpretada por Vera Farmiga; mas é um personagem secundário; Faces da Verdade vai fundo nas questões relacionadas à imprensa, a proteção da fonte de informações, as leis recentes, criadas durante o governo Bush filho, que obrigam os jornalistas a revelar suas fontes em casos que envolvem essa entidade indefinível chamada “segurança nacional”.

Mesmo assim, a rigor, a rigor, Jogo de Poder é o terceiro filme sobre as mentiras usadas pela quadrilha Bush-Channey para justificar a invasão do Iraque em 2003.

Há seguramente uns 3.000 filmes denunciando os crimes do nazismo. Que sejam feitos mais.

E, se forem feitos 300 bons filmes contra Bush-Channey, ainda serão poucos.

Tema batido, surrado, é a vovozinha.

O filme não esconde em momento algum: é parcial, sim

Jogo de Poder não esconde: o filme conta a versão dos fatos baseado na experiência real dos dois personagens reais, Joe Wilson e Valerie Plame. O roteiro, de Jez Butterworth e John-Henry Butterworth, se baseia (isso é dito nos créditos finais), nos livros escritos por Joe Wilson e sua mulher Valerie Plame – o dele se chamou The Politics of Truth, com o subtítulo Inside the Lies that Led to War and Betrayed My Wife’s CIA Identity: A Diplomat’s Memoir, e o dela, Fair Game: My Life as a Spy, My Betrayal by the White House.

Como extras, o Blu-ray do filme traz os comentários do próprio casal mostrado na ação, os verdadeiros Joe Wilson e Valerie Plame.

É parcial? É. Não dá para dizer que não. É parcial, sim. Entre mil outras coisas, Sean Penn não estaria no filme se ele fosse pró-republicanos. É um filme maravilhosamente, entusiasticamente parcial – a favor da verdade dos fatos. Ou alguém hoje ainda acredita em George W. Bush ou Dick Channey? Nas armas de destruição em massa de Saddam ditador assassino Hussein?

Claro: deve haver quem acredite. Os mesmos que acreditam em Papai Noel, em absoluta liberdade para as grandes corporações, para o sacrossanto mercado financeiro – que são parecidíssimos, embora, claro, não gostem de admitir, com seus irmãos do outro lado, os que acreditam na tutela geral e absoluta do Estado Pai e Mãe Onipresente, Onisciente, e oni-roubante, os petralhas de todos os matizes.

Uma produção competente e talentosa em todos os aspectos

Mas aí acho que exacerbei um pouco.

O filme, especificamente enquanto filme…

Sobra talento e domínio de artesanato em tudo: fotografia, direção de arte, trilha sonora. Os atores, ótimos, estão soberbos. Embora batendo de frente no Establishment, é um filme de bom orçamento, e desses que demonstram como pode ser bom um grande orçamento. A ação se passa basicamente em Washington, mas também em Kuala Lumpur, no Cairo, em Amã, em Bagdã, no interior de Níger, e a produção é tão competente que se tem a sensação de que cada sequência foi filmada em locação, em cada um desses lugares. Houve, de fato, filmagens em vários deles.

Alguns números. O orçamento do filme foi de US$ 22 milhões – confortável, mas nada de fato grande, em termos de um filme americano, com grandes atores e produção caprichada, bem cuidada. Aliás, o filme não foi bancado por nenhum dos grandes estúdios de Hollywood; apesar dos custos, e dos astros, a rigor é uma produção independente. O filme não deu lucro – mal se pagou. Segundo o Box Office Mojo, rendeu US$ 9,540 milhões nos Estados Unidos e US$ 14,648 no resto do mundo, total de US$ 24 milhões.

É esplêndida a mistura do filme com as seqüências reais, tiradas dos jornais de televisão. O diretor Doug Liman (ele mesmo também o diretor de fotografia) conseguiu fazer um mix de filme com realidade que é fantástico, de babar.

Acho um luxo, um crème de la crème um filme que tem Sam Shepard aparecendo em uma única sequência – ele faz o pai de Valerie. Ter Sam Shepard como o pai de Valerie é uma coisa assim como ter uma bênção da parte dos Estados Unidos da América que representa o Bem, o acreditar, o ter esperança.

Há talvez um certo excesso de câmara de mão – uma câmara nervosa, inquieta, agitada. Mas o tema é nervoso, inquieto, agitado. Então, paciência: nenhum problema com o excesso de câmara de mão.

A última tomada do filme, fechando em tom maior e ao mesmo tempo em fade out, junto com o barulho dos flashes das máquinas fotográficas, é de um brilho de aplaudir de pé como na ópera. E, aliás, salve as máquinas fotográficas, salve a grande imprensa, salve o não Pravda, o não Granma, salve a mídia sem o controle oficial do(s) partido(s) então no poder!

É um tema complexo. Não é um filme para todas as platéias

E, no entanto, apesar de todas as imensas qualidades, o filme me deixou um tanto inquieto. Fiquei pensando: diabo, mas este não é um filme de entendimento fácil para todas as platéias.

Não é mesmo.

Eu, que sou relativamente bem informado, o relativamente aí indo por uma modéstia que não é muito verdadeira, me senti, em especial no começo da narrativa, um tanto perdido. O que pensariam – pensava eu – as pessoas menos ligadas nesse tipo de tema?

Há, por exemplo, diversas siglas que para o espectador brasileiro mediano são de difícil compreensão – a própria WMD já citada, mais NSA (a agência de segurança nacional), e diversas outras, que designam seções da máquina governamental dos EUA. Intercalam-se sequências que tratam de diferentes temas – são mostradas em ações paralelas, por exemplo, o que está acontecendo com Joe Wilson em Níger ou em Washington e com Valerie Plame dentro do prédio da CIA ou em uma de suas muitas viagens pelo mundo (Valerie Plame é a bela mulher da foto). E a câmara inquieta insiste em percorrer os diversos rostos dos diversos personagens durante as reuniões de trabalho.

Não teria sido possível fazer um roteiro mais simples, um pouquinho mais didático? – eu me perguntei.

Em especial nos primeiros 15 minutos do filme, achei que os roteiristas cederam um pouco a uma onda que vem conquistando muitos adeptos, a de tentar transformar as histórias simples em um pouco mais complexas, para parecer que se está contando uma história de uma maneira inteligente. Ou, falando em termos simples, essa onda cada vez mais comum segundo a qual Podendo-Complicar-a-Narrativa,-Por-que-Simplificar?

Com o agravante de que aqui não se trata de uma história simples.

São questões bastante complexas, essas. Se nego cria uma narrativa mais simples, mais acessível, levará pau porque quis simplificar, não criou, não transcriou. Se nego procura fazer uma narrativa não didática de fatos que em si são extremamente complexos, já é chamado de “bolorento”, como fez a revista Vejinha, do alto de sua empáfia – uma empáfia quase tão gigantesca quanto seu reacionarismo. (A Veja parece mais à direita que o Canal Fox, citado no filme como exemplo de reacionarismo.)

Bem. A verdade é que este não é, de fato, um filme para todas as audiências. É um filme sério, que fala sobre política de maneira séria, densa. Então, ao fim e ao cabo, acho que o diretor Doug Liman escolheu bem a forma da sua narrativa. Ele não pretende mesmo falar com todos os espectadores do mundo.

Fica, de qualquer forma, um gostinho ruim de que o filme, afinal, está falando apenas para quem já sabia o que ele queria dizer.

E aí a coisa fica mais complexa ainda. Alguém já inventou um jeito de dizer para o outro lado aquilo que o outro lado não quer conhecer, ou não sabe ouvir?

Quando um belo, sério filme sobre política deixa o comentarista finalizando seu texto com interrogações, é porque ele é de fato bom.

Jogo de Poder/Fair Game

De Doug Liman, EUA, 2010

Com Naomi Watts(Valerie Plame Wilson), Sean Penn (Joe Wilson), Bruce McGill (Jim Pavitt), Michael Kelly (Jack), Ty Burrell (Fred), Noah Emmerich (Bill), David Andrews (Scooter Libby), Sam Shepard (Sam Plame), Tim Griffin (Paul), Jessica Hecht (Sue)

Roteiro Jez Butterworth e John-Henry Butterworth

Baseado nos livros The Politics of Truth: Inside the Lies that Led to War and Betrayed My Wife’s CIA Identity: A Diplomat’s Memoir, de Joseph Wilson, e Fair Game: My Life as a Spy, My Betrayal by the White House, de Valerie Plame

Fotografia Doug Liman

Música John Powell

Produção River Road Entertainment, Participant Media, Imagenation Abu Dhabi FZ, Zucker Pictures. Blu-ray e DVD Paris Filmes.

Cor, 108 min

***1/2

4 Comentários para “Jogo de Poder / Fair Game”

  1. Gostei do filme mas o Sérgio acertou ao falar de “Podendo-Complicar-a-Narrativa,-Por-que-Simplificar?”.
    É uma moda e bastante desagradável assim como usar câmara à mão sempre a vacilar e a saltar. Outra moda incomodativa.
    É pena, porque de resto o filme está bom.

Comentário

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