Inverno da Alma / Winter’s Bone

Nota: ★★½☆

Anotação em 2011: Vem sendo imensamente incensado, este Inverno da Alma/Winter’s Bone, um filme sombrio, soturno, desesperançado, sobre uma adolescente de 17 anos do interiorzão do Missouri que carrega nos ombros um fardo imenso, todos os problemas do mundo reunidos.

Produção independente até a medula, dirigido e co-roteirizado por Debra Granik, uma americana de Massachusetts nascida em 1963, com apenas um longa-metragem no currículo antes deste aqui, o filme custou apenas US$ 2 milhões, uma bobagem, uma merrequinha, até mesmo para os padrões do cinema indie, e já se pagou e deu lucro várias vezes – rendeu, em pouco mais de um ano, US$ 13 milhões. Coisa pouca para os padrões dos grandes estúdios, mas uma relação custo/benefício sensacional.

Noves fora, o que mais impressiona é o retumbante sucesso de crítica. Lançado nos Estados Unidos em junho de 2010, Inverno da Alma amealhou 39 prêmios, fora 61 outras indicações. Entre as indicações, houve quatro para o mais badalado de todos os prêmios, aquela estatueta do sujeito careca distribuída pela vetusta Academia. Não é, de jeito nenhum, toda hora que um filme tão independente, e tão lúgubre, tão pesado, tão sem qualquer esperança, seja indicado para os Oscars de melhor filme, melhor atriz, melhor ator coadjuvante e melhor roteiro adaptado.

Os mesmos atores indicados ao Oscar – a garotinha Jennifer Lawrence e John Hawkes, que faz o tio da protagonista – tiveram também indicações aos prêmio dos Screen Actors Guild, o sindicato dos atores. Jennifer Lawrence, um fenômeno, um talento imenso (falo mais dela ao final deste comentário), ainda teve uma indicação ao Globo de Ouro.

No quesito adjetivos da crítica, o filme também é um sucesso magnífico. “Impressionante. Um filme que pega você pelas tripas”, disse a Rolling Stone. “Um sucesso absoluto”, disse o New York Times. “Uma obra-prima do cinema americano”, disse o Times de Londres. “Um poderoso conto de suspense”, “Deslumbrante!”, “Imperdível”, dizem outros jornais, citados na capa do Blu-ray e do DVD brasileiros.

Uma adolescente cheia de pesados fardos em um mundo insensato

A adolescente Ree (o personagem de Jennifer Lawrence) cuida de dois garotinhos, Sonny (Isaiah Stone), aí de uns 12 anos, e Ashlee (Ashlee Thompson). Moram numa área rural do Missouri, numa cabana bem pobre, embora com os confortos mais básicos. Ree administra a casa, toma conta dos irmãos menores e cuida da mãe, uma mulher precocemente envelhecida, que não sabemos direito se tem Alzheimer, se é autista, o que raios é – mas é uma pessoa absolutamente distante deste insensato mundo.

E bota insensatez no mundo de Ree.

O filme opta por não dizer explicitamente as coisas ao espectador: confia em que o espectador conseguirá interpretar os seus símbolos, os seus não ditos – e quase tudo no filme é não dito.

Consegue-se perceber (é verdade que com algum esforço), que o pai de Ree, assim como todos os seus vizinhos, todos eles de alguma forma parentes de sangue, estão envolvidos em atividades ilegais – especificamente, a produção, em laboratórios improvisados, e a distribuição do speed, uma droga sintética, uma metanfetamina.

O pai de Ree está desaparecido. O espectador fica sabendo disso quando o xerife do condado aparece diante de sua cabana e diz: “Ele não se apresentou à corte. Ele hipotecou a casa para pagar sua fiança. Se ele não aparecer diante do juiz na próxima semana, teremos que tomar esta propriedade”.

Firme, cheia de certezas, Ree responde: – “Eu vou achá-lo.”

E inicia-se, então, a busca da garota Ree pelo pai, perdido naquele fim de mundo (em vez de fim, o substantivo deveria ser outro, mas de repente não me sinto à vontade para usá-lo com todas as suas duas letras, sem acento).

Na busca pelo pai perdido naquele fim de mundo, Ree vai comer o pão que o diabo amassou, vai sofrer todo o sofrimento físico que é possível sofrer. Sofrimento moral, sei lá se ela sabe o que é isso.

Personagens que têm seus próprios códigos – um universo que não consegui compreender

Não me dei bem com Inverno da Alma. As relações das pessoas com os filmes são complicadas, assim como as das pessoas com outras pessoas. Às vezes o anjo da guarda da gente não se dá bem com o da outra pessoa. Há simpatias à primeira vista, antipatias à primeira vista. Não tive antipatia pelo filme – só não consegui entrar na mesma rotação que ele. Não consegui entrar em sintonia com ele.

Até que me esforcei para tentar entender em que tipo de onda ele tocava, mas o esforço foi em vão. Ficava ele lá – um filme obviamente bem feito, muitíssimo bem interpretado – e eu cá, bem distante dele.

Questão de códigos, em grande parte. Inverno da Alma mostra o duro dia-a-dia um bando de drop-outs, de desajustados, de pequenos bandidos, de banidos do sonho americano. Gosto disso, gosto imensamente de filmes que mostram desajustados, drop-outs, banidos do sonho americano. Mas ele mostra aquelas pessoas, que têm seus próprios códigos morais, seus próprios códigos para se expressar, que eu simplesmente não consigo compreender.

Me senti, ao ver Inverno da Alma, como a gente se sente quando é forçado a ir à festa da firma da mulher, ou do irmão, ou de um grande amigo. Estão lá dezenas de pessoas falando em sua linguagem própria, exclusiva de quem trabalha naquela firma – private jokes, inside jokes, histórias à clef. Todo mundo entende quando há uma referência a determinada coisa – todo mundo daquele universo, mas eu não sou daquele universo, não entendo aquela lógica, aquela língua, aquelas referências.

Estava lá o filme – e, uns 500 mil anos luz distante, estava eu aqui.

Deve ser um filme muito bom mesmo, com tanta admiração, tanto prêmio, tanto superlativo.

Uma coisa é certa: não vou revê-lo pra tirar a teima. A vida é curta demais.

Uma atriz extraordinária, uma força da natureza, uma presença magnética na tela

Há outra coisa certa – e bem mais importante: Inverno da Alma mostra ao mundo uma atriz extraordinária.

Jennifer Lawrence é absolutamente impressionante. Uma força da natureza, dessas bem raras. E

Eu já a havia visto, num papel pequeno, em Vidas Que Se Cruzam/The Burning Plain, Guillermo Arriaga, de 2008; vi que era uma garota linda, mas não percebi seu talento – o problema obviamente foi meu, não dela.

Jennifer Lawrence se mostra, neste Inverno da Alma, e também em Um Novo Despertar/The Beaver, de Jodie Foster, lançado em 2011, uma atriz de talento imenso, uma presença forte, magnética na tela. Basta vê-la nesses dois filmes para se ter a certeza: estamos diante de um talento comparável ao de – para citar apenas atrizes nascidas a partir dos anos 80 – Ellen Page, Natalie Portman, Saoirse Ronan.

Nasceu no Kentucky, em 1990. Começou a carreira aos 16 anos, em filmes e séries da TV. Estava, portanto, com 20 anos quando fez Inverno da Alma e recebeu a indicação ao Oscar – seguramente a primeira, porque outras virão. Aos 21 anos, já recebeu 19 prêmios, e teve outras 23 indicações. Ninguém segura essa menina.

Inverno da Alma/Winter’s Bone

De Debra Granik, EUA, 2010

Com Jennifer Lawrence (Ree), John Hawkes (Teardrop), Isaiah Stone (Sonny), Ashlee Thompson (Ashlee), Valerie Richards (Connie), Shelley Waggener (Sonya), Garret Dillahunt (xerife Baskin)

Roteiro Debra Granik & Anne Rosellini

Baseado no romance de Daniel Woodrell

Fotografia Michael McDonough

Música Dickon Hinchliffe

Produção Anonymous Content, Winter’s Bone Productions. DVD e Blu-ray Califórnia Filmes.

Cor, 100 min

**1/2

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