Sherlock Holmes

Nota: ★★★½

Anotação em 2010: Não é à toa que o Sherlock Holmes de Guy Ritchie recebeu tantos elogios. É uma beleza de filme, um espetáculo para os olhos, uma gostosíssima diversão.

Tudo é de primeiríssima qualidade, nesta produção cara (o orçamento foi de US$ 90 milhões), requintada, mas seguramente o mais acachapante é a direção de arte. É absolutamente extraordinário o trabalho de James Foster e Nick Gottschalk na criação dos cenários internos, a casa do número 221 da Baker Street, a zorra absoluta que é o aposento privado de Sherlock Holmes – mas é ainda mais fantástica a reconstituição, ou a reinvenção, da Londres de 1891.

As ruas da Londres do filme, em geral repletas de gente, um grande formigueiro humano, o movimento de uma grande metrópole, as casas, as pontes, o Tâmisa cheio de barcos – é tudo de fazer a delícia de qualquer pessoa que já tenha lido algum dos 56 contos e quatro romances em que aparece o detetive mais famoso da história. É como uma viagem no tempo, como se estivéssemos na Londres de Sherlock Holmes e do dr. John Watson. E a sacada de mostrar várias vezes a Tower Bridge sendo construída é excelente, um belo achado.

Se a sensacionalmente bem feita reconstituição da Londres de 1891 é fiel, cuidadosa, o Sherlock e o Watson do filme, por outro lado, são extremamente diferentes daqueles a que estamos acostumados a ver nas dezenas e dezenas de filmes que retratam o detetive e seu grande amigo médico – são mais de cem, segundo Leslie S. Klinger, o editor e organizador da Edição Definitiva – Comentada e Ilustrada, lançada no Brasil pela Zahar.

Quem definiu o tipo físico de Sherlock e de Watson, a partir das descrições feitas por Watson em seus relatos, foi um sujeito chamado Sidney Paget. Esse senhor foi o autor das ilustrações que acompanharam a primeira história surgida sobre o detetive, na Strand Magazine londrina, em julho de 1891, assim como praticamente todas as que vieram depois. Depois de publicadas na revista, as primeiras histórias foram reunidas no livro As Aventuras de Sherlock Holmes, editado também em Londres, em 1892; aquela edição original trazia 104 ilustrações de Sidney Paget (como a que vai aí abaixo).

O Holmes que apareceu na revista original e no primeiro livro era alto, magro, rosto comprido; Watson era mais baixo, gordinho.

Praticamente todos os ilustradores que viriam depois seguiram os traços básicos definidos por Sidney Paget – assim como a imensa maioria desses mais de cem filmes. Sherlock Holmes é um homem alto, magro, de rosto comprido; seu cabelo é curto, e ele possui entradas na testa; está em geral vestido com terno e gravata, mesmo quando está em sua casa na Baker Street. Em geral, sua expressão é sisuda. Já Watson é mais baixo, mais corpulento, mais gordinho, com um rosto mais redondo, a expressão bem mais amável, muitas vezes risonha.

         O filme rompe totalmente com a imagem física dos heróis

O diretor Guy Ritchie, os roteiristas e os produtores romperam totalmente com a imagem física que sempre se teve de Sherlock e Watson, ao escalar Robert Downey Jr. e Jude Law para os dois papéis.

Muito mais que isso: o Sherlock Holmes do novo filme é um homem de ação, tipo atlético, forte, à la Indiana Jones; corre, briga – é um grande lutador de boxe, um Mike Tyson -, até luta espada, como um Robin Hood ou um Scaramouche.

Isso pode, deve ter deixado revoltados muitos sherlófilos mundo afora – e são dezenas, centenas de milhares os estudiosos da sherlosofia. (Deixou revoltado, por exemplo, meu amigo Valdir Sanches – a quem convidei para expressar neste site sua revolta. Ela está expressa em um post específico.)

A imagem que se costuma ter de Holmes é do intelectual, o pensador, o detetive que passa a maior parte do tempo sentado em sua poltrona, fumando seu cachimbo, que raciocina, que usa a lógica, a dedução, para descobrir os culpados dos crimes, para solucionar os mistérios.

No making of que acompanha o filme no DVD, várias pessoas envolvidas na produção afirmam que os relatos originais sobre Holmes mostram que ele era tanto um homem de raciocínio quanto de ação – e isso é verdade. De fato, nos relatos feitos pelo dr. John Watson há referências ao fato de que Sherlock admirava o boxe, era um expert em se fantasiar das mais diferentes pessoas, ia às ruas, metia-se nos lugares mais miseráveis, mais inesperados, atrás de pistas para a solução dos casos, tinha grande força física.

É verdade. É preciso admitir isso: o Sherlock homem de ação não é uma invenção do filme. Mas acontece que o Sherlock do filme é homem de muita ação; tem todo o uso da lógica, da dedução – mas age muito, é um Indiana Jones mesmo, um super-herói.

         O Holmes do filme gosta de mulher!

E, além disso, gosta de mulher.

Verdade que não quer que Watson saia da casa que dividem no número 221 da Baker Street, e não trata nada bem Mary (a sempre linda Kelly Reilly), com quem o médico pretende se casar. Mas não há qualquer insinuação de homossexualismo, nem de dificuldade de relacionamento do detetive com o sexo feminino. O filme deixa claro que Sherlock já havia no passado tido um caso com Irene Adler (Rachel McAdams), e que os dois dão uma trepada no Grand Hotel.

Ora, no Cânone Sherlockiano (essa é a expressão usada pelos sherlófilos, ou sherlockianos, para definir o conjunto de textos originais publicados sobre o detetive, os 56 contos e quatro romances), não há qualquer menção ou indicação de que Sherlock e Irene tenham, como se dizia antigamente, chegado às vias de fato; aliás, no Cânone não há, se não estou muito enganado, indicação de que Sherlock tenha comido (ou sido comido por) uma única mulher na vida.

         Massa cinzenta junto com força física e destreza

Bem. O que estou querendo dizer é que, por vários motivos, o Sherlock Holmes do filme de Guy Ritchie é bastante diferente dos que já foram mostrados em mais de cem outros filmes. Embora os roteiristas e o diretor não tenham a rigor fugido muito do que está relatado no Cânone, é, de fato, um Sherlock Holmes como nunca se tinha visto – assim como um doutor Watson diferente de tudo o que sempre se viu.

É um Sherlock Holmes bem mais palatável – sem dúvida alguma – para as gerações mais novas. Embora (insisto mais uma vez) as características que aqui estão exacerbadas – o homem de ação, de físico forte, ótimo de briga – estejam presentes nos relatos originais escritos pelo doutor John Watson.

E uma das coisas mais brilhantes do filme – um recurso que Guy Ritchie usa umas três vezes, se não me engano – é a junção que ele faz do raciocínio e da ação: Holmes-Robert Downey Jr. olha o adversário, prevê como pode atacá-lo, prevê a reação do adversário e seu golpe seguinte. E, logo em seguida, vemos o que ele raciocinou, planejou logicamente, virar verdade dos fatos. São seqüências de fato espetaculares, essas das lutas em que a cabeça de Holmes antecipa o que seu corpo fará.

         Tradições seculares

Há diversas sociedades que reúnem sherlockianos do mundo todo, como, por exemplo, a The Baker Street Irregulars, que edita o Baker Street Journal, dedicado a dissecar a vida do detetive e suas aventuras. “Revistas e livros sofisticados sobre Sherlock Holmes são publicados às duzias todos os anos; a torrente de imitações parece inesgotável”, diz o já citado estudioso Leslie S. Klinger. “Fã-clubes, alguns com programações eruditas, reúnem-se todos os meses em todos os principais países. Holmes foi qualificado como uma das três personalidades mais conhecidas do mundo, partilhando os holofotes com Mickey Mouse e Papai Noel.”

É uma tradição secular, entre esses admiradores, considerar que Sherlock Holmes é uma pessoa real, que teve existência concreta, assim como Watson. Os relatos sobre suas aventuras, os casos que resolveu, foram escritos por Watson, nos tais 56 contos e quatro romances. Segundo essa tradição, o extraordinário escritor escocês Arthur Conan Doyle (1859-1930), que assina as obras, na verdade foi apenas um intermediário, um amigo e agente literário de Watson que levou para as editoras de revistas e livros os originais escritos pelo companheiro do detetive.

Também é uma tradição quase secular que outras pessoas criem novas histórias com Sherlock e Watson, diferentes das relatadas pelo segundo. O cinema não apenas adaptou histórias originais escritas por Watson, mas também criou muitas outras.

O filme de Guy Ritchie segue essa tradição. Usa os personagens que estão nos relatos originais – Holmes, Watson, Irene Adler, o inspetor Lestrade, da Scotland Yard, o professor Moriarty – para, a partir daí, criar uma nova história.

Foi um belo trabalho. É uma bela história, uma bela trama. Sherlock e Watson levam a polícia a capturar Lord Blackwood, um nobre que se envolve com magia negra, assassina várias mulheres e planeja dominar a Inglaterra e o mundo. Blackwood é condenado à morte, e assiste-se à sua execução – mas, dias depois de seu enterro, o túmulo é destruído e, no caixão, vão encontrar o corpo de um anão. O grande criminoso teria ressuscitado?

Londres fica em polvorosa. Só o grande Sherlock Holmes poderá resolver o mistério. Para isso, ele terá, além da sempre eficaz companhia de Watson, é claro, a ajuda (ou, ao contrário, o embaraço, a atrapalhação?) de Irene Adler. Irene Adler, ela mesma uma fora-da-lei, a mulher que o misógino detetive mais admira na vida, à qual só se refere como A mulher, com intonação forte a sublinhar o artigo definido.

Tudo funciona perfeitamente bem na trama criada para o filme – e, no fim, é óbvio, abre-se espaço para novas e sensacionais aventuras. Tudo pronto para que venham por aí Sherlock Holmes 2, 3, 4.

         Jude Law competente como sempre, Downey Jr. excelente

Num elenco todo perfeito, Jude Law exibe a competência de sempre. Mas o show maior é mesmo de Robert Downey Jr. Vai ser difícil ver Sherlock Holmes em qualquer outro filme sem lembrar desse grande ator. E que maravilha vê-lo tão em forma e num período de grandes sucessos de público, depois de anos e anos em que enfrentou o inferno das drogas.

Como era preciso uma trilha sonora grandiosa, poderosa, para acompanhar as muitas cenas de ação, chamou-se Hans Zimmer, o especialista no assunto – e o bicho não falha. Entregou a trilha perfeita para o filme.

Tem sido um grande sucesso. Estreou na Inglaterra e nos Estados Unidos em dezembro de 2009 e até maio de 2010 rendeu US$ 516 milhões. Merecido sucesso. É uma beleza de diversão.

Outros filmes de alguma forma com Sherlock Holmes já neste site:

Melodia Fatal/Dressed to Kill, de Roy William Neill, 1946 O Irmão Mais Esperto de Sherlock Holmes/The Adventure of Sherlock Holmes’ Smarter Brother, de Gene Wilder, 1975
Sherlock Holmes – Como Tudo Começou/Murder Room: The Dark Beginnings of Sherlock Holmes, de Paul Seed, 1999 O Xangô de Baker Street, de Miguel Faria Jr., 2001
Sherlock/Sherlock ou Case of Evil, de Graham Threakstone, 2002 Sherlock Holmes – Assassinato na Ópera/Sherlock Holmes and the Leading Lady, Peter Sasdy, 2002

 Sherlock Holmes

De Guy Ritchie, EUA-Alemanha, 2009

Com Robert Downey, Jr. (Sherlock Holmes), Jude Law (Dr. Watson), Rachel McAdams (Irene Adler), Mark Strong (Blackwood), Eddie Marsan (Inspetor Lestrade), Kelly Reilly (Mary), James Fox (Sir Thomas Rotheram)

Argumento Lionel Wigram e Michael Robert Johnson, baseado nos personagens criados por Arthur Conan Doyle

Roteiro Michael Robert Johnson, Simon Kinberg e Tony Peckham Fotografia Philippe Rousselot

Música Hans Zimmer

Montagem James Herbert

Direção de arte Sarah Greenwood, James Foster, Nick Gottschalk e Matt Gray

Produção Warner Bros. Pictures, Village Roadshow Pictures

Cor, 128 min

***1/2

17 Comentários para “Sherlock Holmes”

  1. Beleza de diversão, mesmo. E Downey sempre me parece competente. Fui ao cinema ver esse filme com a firme determinação de não gostar, de achar comercial demais, de dizer que deturpou a essência de Holmes…não consegui nada disso. Fiquei contente com a diversão, hipnotizada pelo trabalho dos atores e, principalmente pela parte técnica do filme.

  2. Sérgio Vaz, em vez de me arriscar a ver o filme, prefiro perguntar-lhe o seguinte: é um Spielberg, em que uma ação emenda na outra e faz a alegria dos adolescentes? Lord Blackwood não é um Coringa, ou um adversário do 007, que quer dominar o mundo? Não corro o risco de ver um Stallone bem embrulhado num cenário londrino? Não é possível assistir só ao cenário, sem o Sherlock lutador?

  3. Grande Valdir, único e inimitável Valdir Sanches, caro amigo,
    Lanço um desafio a você: veja o Sherlock do ex-Senhor Madonna e depois conte, para mim e para meus dois ou três leitores, o que você achou…
    Para que você se anime, veja aí, logo acima do seu, o comentário da autora do blog Borboleta nos Olhos, moça de sensibilidade, de fino trato.
    Lord Blackwood quer, de fato, dominar o mundo, mas o filme não tem nada de Stallone. Tem inteligência e talento. Experimente. Se por acaso achar um horror (duvido que ache), é só ver um dos antigos, daqueles com Basil Rathbone e Nigel Bruce, ou então ler uma das histórias escritas por Conan Doyle – perdão, pelo dr. John Watson.
    Vá nessa, Valdir! Grande abraço.

  4. Servaz, topo o desafio.
    Sacanagem terem dado o título de Sir a Conan Doyle e não ao Dr. Watson.

  5. Maravilha! Fico esperando seu texto.
    Quanto ao título de Sir, você tem razão. Como dizia o Obelix, batendo os dedos na cachola: “Esses bretões são uns neuróticos”.

  6. esse filme e muito bom um dos melhores parabens eu keria saber o nome da musica de hans zimmer espero a resposta obrigado!!!

  7. O disco da trilha sonora do filme traz 12 temas:
    1. Discombobulate
    2. Is It Poison, Nanny?
    3. I Never Woke Up In Handcuffs Before
    4. My Mind Rebels At Stagnation
    5. Data, Data, Data
    6. He’s Killed The Dog Again
    7. Marital Sabotage
    8. Not In Blood, But In Bond
    9. Ah, Putrefaction
    10. Panic, Shear Bloody Panic
    11. Psychological Recovery
    12. Catatonic

  8. Esse filme um clichê só, horrível, horrível, eu queria dormir o tempo todo. Não dormi na vã esperança de melhoras. Triste.

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