Rastros de Justiça / Five Minutes of Heaven

Nota: ★★★★

Anotação em 2010: Um filmaço, espetacularmente bem feito em cada detalhe. Um mergulho sério, pesado, denso, sobre uma série de temas fundamentais – fanatismo, terrorismo, assassinato, arrependimento, culpa, vingança, possibilidade/impossibilidade de reconciliação.

O que se focaliza é a guerra fratricida que devastou a Irlanda do Norte nos anos 70, mas a óbvia intenção é falar de todo tipo de fanatismo político ou religioso que leva jovens a aderir a ações violentas, ao terrorismo – cita-se explicitamente a questão dos muçulmanos.

A produção reúne as três nações de alguma forma envolvidas nos conflitos: a Inglaterra, a República da Irlanda e a Irlanda do Norte, o Ulster. O que, por si só, já é um alento.

Para dirigir o filme, foi chamado um alemão, Oliver Hirschbiegel, o autor do ótimo A Queda! As Últimas Horas de Hitler. Fez um trabalho primoroso.

Os dois atores principais nasceram na Irlanda do Norte – o grande Liam Neeson e o bem menos conhecido (por mim, pelo menos) James Nesbitt.

O filme abre com o seguinte letreiro, letras brancas sobre fundo preto, nenhuma imagem para distrair o espectador: “Estima-se que 3.720 pessoas foram mortas no conflito na Irlanda do Norte. Este filme é uma ficção inspirada por dois homens que carregaram o legado daquela matança.”

E aí ouvimos a voz em off de Liam Neeson:

– “Para falar sobre o homem que eu virei, é preciso saber sobre o homem que eu era. Tinha 14 anos quando entrei para as Tartan Gangs, e 15 quando entrei para a UVF.”

Ele usa apenas a sigla UVF. As legendas em português ajudam, dando o significado da sigla – Ulster Volunteer Force. Quando se fala do conflito na Irlanda do Norte, a sigla mais conhecida é IRA, o Exército Republicano Irlandês – ligado à população católica, interessada em se libertar da dominação britânica e na união com o resto da ilha, a República da Irlanda.

Não há grandes explicações, mas será fácil para o espectador perceber que a Ulster Volunteer Force era uma organização extremista do lado oposto, os protestantes, que defendiam a manutenção dos laços com o governo de Londres.

         Uma emissora de TV reúne o matador com o irmão do morto

Enquanto a voz em off de Liam Neeson prossegue falando sobre os conflitos dos anos 70, vemos cenas do país em guerra civil, bombas nas ruas, gente sendo morta em diversas cidades da Irlanda do Norte. “Pais e filhos e amigos sendo mortos nas ruas, e a sensação era de que tínhamos que fazer alguma coisa. Estávamos todos juntos naquilo, e nós todos tínhamos que fazer alguma coisa.”

Neste ponto, depois dessas frases, um letreiro nos situa: estamos em Lurgan, Irlanda do Norte, em outubro de 1975.

Com a competência e a calma de um cirurgião cortando um paciente com o bisturi, o diretor Oliver Hirschbiegel vai então nos mostrar, detalhadamente, como o jovem Alistair Little, então com 17 anos (interpretado por Mark David, um rapaz de imensa semelhança física com Liam Neeson), assassinou com três tiros um rapaz católico, Jim Griffin, diante de seu irmão mais novo, Joe, então com uns dez, 12 anos (interpretado por Kevin O’Neill).

Corta, fade out, tela preta por alguns segundos, e estamos 33 anos depois, em 2008. Uma emissora de TV preparou um encontro entre Alistair Little (o papel de Liam Neeson), o que matou, e Joe Griffin (James Nesbitt), o irmão do morto.

Cada um deles está sendo levado de carro para o lugar do encontro, um casarão gigantesco, um palacete, numa área isolada, no meio do campo, transformado pela emissora de TV em um grande estúdio.

Estamos aí com uns 20 minutos de filme. O que virá em seguida é de tirar o fôlego – e de deixar o espectador pensando e pensando e repensando sobre aqueles temas todos, fanatismo, terrorismo, assassinato, arrependimento, culpa, vingança, possibilidade/impossibilidade de reconciliação.

Além de todos esses temas, ainda há, é claro, a questão da loucura, da absurda crueldade da mídia, dos fantásticos shows da vida, dos reality shows, dos programas de TV que querem transmitir para a intimidade das casas das pessoas a dor, o desespero, o sofrimento de alguns seres humanos.

         O assassino mudou, repensou tudo, é outra pessoa

O letreiro inicial dizia que o filme “é uma ficção inspirada por dois homens que carregaram o legado daquela matança.” Naturalmente, o roteiro deve ter alterado um ou outro detalhe da história, mas tudo indica que é bem mais que uma “ficção inspirada em dois homens”. Nos créditos finais, há um agradecimento específico a Alistair Little e Joe Griffin por sua colaboração, “sem a qual o filme não poderia ter sido realizado”. Sequer foram mudados os nomes – os nomes dos personagens são os das pessoas reais.

De Liam Neeson seria mesmo de se esperar uma grande interpretação. Com ele não tem erro, ele está bem sempre, e está bem aqui. Sua atuação é contida, de gestos suaves, nenhum arroubo – muito próprio para o personagem do homem que, quando muito jovem, matou, foi pego, passou 12 anos na prisão, mudou completamente, repensou tudo.

É uma outra pessoa, agora, que não tem mais nada a ver com o jovem que aderiu ao fanatismo; se tratou, se cuidou, estudou, refinou-se intelectualmente – mas continua torturado pela culpa, pelo arrependimento.

Já o irmão de sua vítima passou 33 anos consumido pelo ódio e pelo desejo de vingança; o Joe Griffin que o ator James Nesbitt (foto abaixo) compõe é uma bomba relógio prestes a explodir, um vulcão à beira da erupção – e sua interpretação é extraordinária.

Para realçar ainda mais os movimentos da lava do vulcão, o diretor Oliver Hirschbiegel faz um uso brilhante do som. Em diversos momentos, o filme como que entra no cérebro torturado de Joe Griffin, e o espectador não ouve mais o que se passa em volta dele, mas apenas a respiração ofegante do personagem.

         Uma síntese brilhante do que leva as pessoas ao fanatismo

O fulcro, o cerne da questão, o coração da matéria, virá na bela voz de Liam Neeson – que aqui solta à vontade seu sotaque irlandês. Numa bela sacada do roteirista Guy Hibbert, lá pela metade do filme ouvimos de novo a fala inicial do personagem Alistair Little – “Para falar sobre o homem que eu virei, é preciso saber sobre o homem que eu era”, até o ponto em que ele havia parado, “Estávamos todos juntos naquilo, e nós todos tínhamos que fazer alguma coisa”.

E aí ele prossegue:

– “A coisa que é preciso lembrar, o que é preciso entender, é a atitude mental, a obsessão. Uma vez que você entra para o terror, é aceito pela organização, o grupo, sua mente se fecha. Só a nossa história passa a importar, não a história deles, os católicos. É só o meu povo que está sendo morto, e sofrendo, e precisa de ajuda. Católicos sendo mortos? Não entra na sua cabeça. E então eu cheguei para Sammy, nosso comandante local, e disse a ele que queria matar um católico.” (…)

– “O que eu quero dizer às pessoas, o que a sociedade deve fazer é impedir que as pessoais cheguem ao ponto de entrar para o grupo. Porque quando você chega a esse ponto, é tarde demais. Ninguém vai parar você. Ninguém vai fazer você mudar de idéia. E uma vez que você está lá, você fará qualquer coisa. Você vai matar qualquer um do outro lado, porque é a coisa certa. Uma vez que ele entra para o grupo, a sociedade o perdeu. E o que ele precisa é de ouvir vozes de seu próprio lado, dizendo para ele parar, antes que ele entre. Não havia vozes do meu lado, do meu lado da cidade. Ninguém estava me dizendo nada a não ser que matar é o certo. Foi só na prisão que ouvi a outra voz. E os muçulmanos agora – as crianças agora são como eu fui. Eles precisam ouvir aquelas vozes agora, para fazer com que eles parem de pensar que matar é o certo. Eles precisam que seu próprio povo diga não. É isso que eles precisam ouvir, e é aí que se deveria agir – para que essas vozes sejam ouvidas em todas as mesquitas do país.” (…)

– “E é por isso que eu falo com todo mundo que queira ouvir, para dizer a todos que façam com que garotos como eu parem de achar que dar tiros em um homem inocente, na cabeça de um homem decente, é uma coisa boa.”

          Sem tomar partido de um dos lados

Esta anotação poderia perfeitamente terminar com o texto brilhante falado por Liam Neeson. Mas sou incorrigível, vou em frente. Gostaria de lembrar que o cinema já havia feito grandes obras sobre a luta no Ulster: Em Nome do Pai, de Jim Sheridan, Mães em Luta, de Terry George, Um Gesto a Mais, de Robert Dornhelm, O Lutador, de novo de Jim Sheridan, entre outros. São, todos esses aí, passados durante os piores anos dos conflitos, nos anos 70, início dos 80; e são, todos, de alguma forma pró-Irlanda do Norte livre do jugo inglês.

Mais recentemente, em 2008, veio O Espião/Fifty Dead Men Walking, o primeiro filme que eu vi que mostra o IRA como uma instituição tão brutal, tão desumana, tão torturadora quanto as tropas de ocupação do Ulster.

Este Five Minutes of Heaven (que título mais besta este que inventaram no Brasil, Rastros da Justiça) é o primeiro que vejo que mostra os conflitos já com o distanciamento do tempo, falando das feridas, das seqüelas da guerra fratricida sem tomar partido por um dos lados. Como um alerta contra as lutas fratricidas todas. O conflito da Irlanda do Norte como base para uma coisa ampla, sem fronteiras, global.

Um brilho de filme. Tanto como obra de arte em si quanto como o que tem a dizer. Um brilho de filme.

Rastros de Justiça/Five Minutes of Heaven

De Oliver Hirschbiegel, Inglaterra-Irlanda-Irlanda do Norte, 2009

Com Liam Neeson (Alistair Little), James Nesbitt (Joe Griffin), Anamaria Marinca (Vika), Barry McEvoy (o motorist de Joe), Richard Orr (o motorista de Alistair), Mark David (o jovem Alistair), Kevin O’Neill (o jovem Joe)

Roteiro Guy Hibbert

Fotografia Ruairi O’Brien 

Música Leo Abrahams e David Holmes

Montagem Hans Funck

Produção Big Fish Films, BBC Films, Northern Ireland Screen, com participação do Irish Film Board. DVD FlashStar

Cor, 90 min

****

2 Comentários para “Rastros de Justiça / Five Minutes of Heaven”

  1. “Você vai matar qualquer um do outro lado, porque é a coisa certa.”
    É uma terrível verdade, ainda ontem demonstrada em Barcelona.
    Racismo e fanatismo de qualquer tipo levam a esta desgraça.
    O filme é excelente em todos os aspectos. Obrigatório ver.

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