O Veredito / The Verdict

Nota: ★★★★

Anotação em 2010: O Veredito, que Sidney Lumet fez em 1982, é um dos melhores filmes de tribunal que já foram feitos, mas não é só. É um dos melhores filmes que já foram feitos. É uma daquelas obras absolutamente perfeitas, em que tudo funciona, não falta nada, não sobra nada, e que ficam melhores a cada nova revisão, que dão vontade de ver de novo, mesmo se estivermos vendo pela quinta ou pela décima vez.

Outros filmes de Sidney Lumet neste site

1957 12 Homens e uma Sentença/12 Angry Men
1959 Mulher Daquela Espécie/That Kind of Woman
1964 Limite de Segurança/Fail Safe
1974 Assassinato no Expresso Orient/Murder on the Orient Express
1981 Príncipe da Cidade/Prince of the City
1986 A Manhã Seguinte/The Morning After
1992 Uma Estranha Entre Nós/A Stranger Among Us
1996 Sombras da Noite/Night Falls on Manhattan
2004 Strip Search
2006 Sob Suspeita/Find me Guilty
2007 Antes que o Diabo Saiba que Você Está Morto/Before the Devil Knows You’re Dead

 Tentei checar quantas vezes já vi O Veredito, mas minhas anotações são falhas, têm muitas lacunas. Achei só uma anotação de 1999: “Revi, pela bilionésima vez, boa parte de O Veredito/The Verdict, do grande Lumet; sempre que zapeio e passo por esse filme, não tem jeito, revejo”.

De fato: uma vez começado, não dá para tirar os olhos do filme.

         Muitas belas tomadas com dois personagens

O Veredito é desses filmes tão marcantes que a gente se lembra bem de tudo, ou quase tudo, mesmo com um intervalo de dez anos entre a penúltima revisão e a de agora. Disse a Mary que me lembrava de tudo – e acabei comentando um monte de detalhes antes que eles aparecessem na tela. Ela teve que me mandar calar a boca.

Registro isso porque acho que tem a ver: O Veredito é um filme tão fascinante que a gente se lembra de muita coisa dele, de diversos detalhes. Mesmo assim, apesar disso, ou por isso mesmo, a cada nova revisão se tem um imenso prazer. Vê-se um novo detalhe. Confirma-se como determinado detalhe era brilhante. Surpreende-se com determinada frase que era mais brilhante do que a gente se lembrava. Determinado movimento de câmara impressiona pela quinta, ou décima vez.

Desta vez, em especial, me surpreenderam as tomadas em que aparecem dois personagens, um em primeiro plano, outro em segundo, e os dois atores estão absolutamente brilhantes, e o que acontece no rosto do personagem em segundo plano é tão bem trabalhado quanto o que acontece com o personagem em destaque.

         Sobre a oportunidade de redenção, sobre a luta de Davi contra Golias

Mas acho que seria bom tentar começar do começo.

O Veredito é um filme sobre a segunda chance, a nova oportunidade. Sobre a possibilidade de redenção. Sobre as qualidades e os defeitos das instituições que as sociedades criaram ao longo dos séculos. Sobre a Justiça, o júri popular. Sobre amizade, solidariedade – e sobre traição. É mais um relato – e já são uns 6 mil anos de relatos – da luta de Davi contra Golias, dos pequenos contra os gigantes.

É um tema caríssimo ao cinema de uma maneira geral, mas em especial do cinema americano: o homem que luta só, ou quase só, contra um poder gigantesco, goliático, ciclópico. É a base do western, o mais americano de todos os gêneros. É o tema de alguns dos maiores clássicos do cinema, de Matar ou Morrer/High Noon, ou Os Brutos Também Amam/Shane, às maiores obras de Frank Capra, A Mulher Faz o Homem/Mr. Smith Goes to Washington em especial. Ou de novos clássicos, filmes mais recentes como, por exemplo, Os Intocáveis, de Brian De Palma, ou Julgamento Final/Class Action, de Michael Apted, ou A Qualquer Preço/A Civil Action, de Steve Zaillian, ou Silkwood, de Mike Nichols, ou Terra Fria/North Country, de Niki Caro, ou Erin Brockovich, de Steven Soderbergh. Ou de qualquer livro do autor mais americano que pode haver, John Grisham.

Paul Newman definiu assim: “Algumas pessoas dirão que é um filme de tribunal, e não é. Dirão que é um ataque à Igreja Católica, e não é. Dirão que é um ataque aos hospitais, e não é. É, na realidade, sobre a redenção de um ser humano.”

         No fundo do poço, o herói não consegue sequer levar o copo à boca

Todos os créditos iniciais do filme são mostrados em uma única tomada, em que vemos Paul Newman jogando numa máquina de pinball, num bar, junto à janela, tendo atrás dele uma praça.

Sidney Lumet nos apresenta quem é o personagem em uma série de seqüências nos primeiros oito, dez minutos de ação. O personagem interpretado por Paul Newman, Frank Galvin, é um homem no fundo do poço – esburacando cada vez mais o poço para que o fundo fique ainda mais fundo. Frank Galvin já perdeu a dignidade; mantém ainda uma máscara, uma pose, mas está vertiginosamente perdendo até isso. Suborna funcionário de funerária para poder chegar perto da viúva e apresentar seu cartão e seus préstimos como advogado. A primeira viúva mostrada pelo filme mal consegue segurar o cartão de visitas de Frank em suas mãos; no segundo velório, o filho do morto o enfrenta, o confronta, o bota para fora.

Numa seqüência dura, apavorantemente angustiada, Frank, lendo o obituário do jornal para ver onde atacará em seguida, não consegue levar até a boca o copinho pequeno de uísque cowboy que está tomando de manhãzinha – a mão treme demais, o conteúdo escapará do contendor. Frank olha rapidamente para o lado e abaixa a cabeça rumo ao copo, para sorver a primeira dose do dia, a que permitirá que ele consiga erguer o copinho para a segunda dose.

Rastejar mais por baixo que cu de cobra é isso aí. Derrotado, humilhado pela sua própria humilhação, em seguida Frank, bêbado feito um gambá, terá um ataque de fúria, de violência, e destruirá boa parte de seu escritório de advocacia – inclusive o diploma universitário antes pendurado na parede.

         Um dejeto miserável e um caso: uma jovem que virou vegetal

Em menos de dez minutos de ação, o diretor Sidney Lumet, o roteirista David Mamet e Paul Newman põem o espectador diante de uma pessoa que está muito abaixo da linha que separa o ser humano do dejeto mais miserável, mais podre.

Frank está desmaiado no chão quando chega ao escritório o único amigo que tem na vida, Mick (o grande Jack Warden, na foto). Mick dá-lhe um esporro bem dado, e tenta lembrar a ele que ele tem um caso, seu único caso dos últimos anos – uma jovem e seu marido, Sally (Roxanne Hart) e Kevin (James Handy), o contrataram para representá-los; Deborah Ann, a irmã da moça, internada num hospital para dar à luz, perdeu o bebê e a rigor a vida; vegeta hoje numa ala de casos perdidos, mantida viva artificialmente por tubos.

         Uma das melhores interpretações de um ator grande, soberbo

O cinema já fez muitas belíssimas descrições de viciados. Admiro muito os bons filmes que tratam seriamente do alcoolismo – Farrapo Humano/The Lost Weekend, de Billy Wilder, de 1945, Vício Maldito/Days of Wine and Roses, de Blake Edwards, de 1962. O Frank Galvin interpretado por Paul Newman é um absoluto brilho nessa galeria. Até porque Paul Newman é um absoluto brilho sempre – mas neste filme aqui ele tem uma das melhores interpretações de sua carreira cheia de interpretações brilhantes.

Lumet focaliza o alcoólatra, fracassado, perdedor Frank com uma câmara suavemente colocada no alto, um suave contre-plongée, no momento em que ele está sentado diante do arcebispo de Boston em pessoa – o arcebispado de Boston, a capital da Nova Inglaterra, a capital da riqueza e da arrogância anglo-saxônicas no Novo Mundo –, e Sua Eminência, num gesto de extremo mau-caratismo mascarado por profunda humildade, oferece um cheque, já pronto, no valor de US$ 210 mil.

O acordo pré-julgamento – uma das maiores instituições americanas. Tão importante quanto o hot-dog, o hambúrguer, o beisebol, a Coca-Cola, o McDonald’s, a torta de maçã, o feijão sem sal. Nego vai à Justiça, pede uma indenização; de um julgamento nunca se sabe o que vai sair, e então a empresa ou instituição que poderia se tornar ré oferece um acordo, um pagamento antes que o caso vá a júri.

Frank Galvin-Paul Newman está segurando sua pasta no colo, de maneira pouco à vontade, pouco elegante, visto numa câmara que o pega de cima para baixo, realçando sua falta de elegância, seu pouco à vontade. Um advogado bêbado diante de Sua Eminência o arcebispo de Boston, dono do hospital St. Catherine, onde uma jovem havia entrado para dar à luz e do qual saiu sem bebê e em estado vegetal.

Davi diante de Golias.

Na seqüência imediatamente anterior, Frank, o pobre coitado ser humano que está muito, mas muito mais por baixo que cu de cobra, havia ido até o hospital onde a paciente jazia. Fez duas fotos dela – e, em seguida, olhou para ela. Primeiro fotagrafou duas vezes, numa máquina do tipo Polaroid, de resultados instantâneos – e depois olhou para aquela coisa diante de si mesmo. Ele mesmo uma coisa mais por baixo que cu de cobra, e ela, um ser humano tornado um vegetal por um erro médico.

Davi olha para Golias, e pronuncia sentenças com uma voz extremamente cansada, exausta.

Frank Galvin não tem coragem de olhar nos olhos de Sua Eminência, o arcebispo de Boston, mas consegue dizer que o assusta o fato de o cheque que lhe põem na mão ser de US$ 210 mil – 21, uma quantia tão facilmente divisível por 3, quando todos ali estão sabendo que o advogado recebe um terço do que for acordado.

         Um belo cheque, para deixar todo mundo satisfeito

Numa seqüência anterior, Frank havia sido definido para o arcebispo como um ambulance chaser. Que tenebrosa expressão – caçador de ambulância. É a forma americana de definir aquele tipo de advogado que vai atrás das pessoas humildes que sofreram algum tipo de ferimento que talvez possa ter sido provocado por uma empresa – e então let’s sue them, vamos à Justiça para exigir uma indenização. Aqui usamos outra expressão, também repleta de significados: advogado de porta de cadeia.

Pois bem. Depois que o ambulance chaser, advogado de porta de cadeia Frank tira duas fotos do ser humano que a negligência de grandes médicos do grande hospital do grande arcebispado transformou em vegetal, ele pára por um momento e pela primeira vez olha, vê, enxerga o que tem diante de si.

E aí então, diante do Golias em pessoa, o todo poderoso arcebispo, o pequeno Davi-Frank Galvin, alcoólatra, fracassado, tornado ainda mais insignificante pela câmara que o focaliza de cima para baixo, diz não para o cheque que quer comprar para sempre o silêncio a respeito do crime que transformou uma moça em vegetal.

         Em uma seqüência, um pequeno tratado sobre a sociedade 

Tudo o que Sally e Kevin, a irmã da vítima e seu marido, queriam era uma boa indenização, o settlement, o acordo antes que o caso fosse levado para o tribunal. Não que sejam más pessoas, a irmã e o cunhado; muito ao contrário – são pessoas boas. Comuns, simples, gente como a gente. Com uma boa grana de indenização, poriam a doente numa instituição razoável, e recomeçariam a vida longe dali.

Até porque, o caso indo a  julgamento, tudo poderia acontecer. Inclusive eles perderem a causa e não receberem um tostão.

E então o advogado recusa o acordo – um acordo bastante bom.

Kevin (James Handy) confronta Frank no prédio do tribunal. É uma das tais seqüencias geniais em que a câmara focaliza dois atores, um em primeiro plano, um em segundo. Kevin, sujeito de classe média baixa, trabalhador honrado mas humilde, faz um violentíssimo discurso contra os policiais, os advogados, os agentes do governo, que estão sempre prometendo paraísos e não entregando nada.

Em segundo plano, vemos a mulher dele – Sally se mostra ao mesmo tempo envergonhada, embaraçada, em dúvida, sem saber se apóia o marido que fala verdades mas a deixa sem graça por estar, humilde, peitando gente de classe superior, em parte feliz pelo fato de que o marido está falando verdades.

É extraordinário – em uma única tomada, focalizando dois personagens, Lumet faz um pequeno tratado sobre a sociedade dividida em classes sociais.

O mesmo esquema de dois personagens na mesma tomada será usado em outras belas seqüências.

         A câmara bem no alto; um diálogo crucial – e não ouvimos nada

Numa cena crucial, quando o filme está se encaminhando para o desfecho, Lumet opta por um enquadramento ao mesmo tempo simples e genial. Mick foi se encontrar com Frank em Nova York, tem uma notícia terrível, apavorante, chocante para dar. O espectador já sabe que notícia é, ficou sabendo um pouco antes. E então Lumet põe sua câmara sobre uma grua, bem no alto; vemos Mick dando a notícia a Frank, os dois de pé numa calçada de Nova York, dezenas de pessoas passando de um lado para o outro – não ouvimos o que eles estão dizendo, não é necessário. Já sabemos.  

Um brilho.

         Um elenco excepcional para personagens marcantes

O elenco não poderia ser melhor. Além de Paul Newman e Jack Warden, temos James Mason como o dono do gigantesco, competentíssimo, imbatível escritório de advocacia que defenderá o Arcebispado, seu hospital e os dois médicos; a maravilhosa Charlotte Rampling (na foto), linda, elegante, como a mulher que Frank fica conhecendo no bar que freqüenta diariamente; e ainda Milo O’Shea como o juiz Hoyle.

O juiz Hoyle é uma vergonha para a Justiça, para a humanidade. E não dá para esquecer que o mesmo Milo O’Shea fez o papel do advogado de defesa dos imigrantes italianos Sacco e Vanzetti, acusados por um crime que não cometeram, no filme Sacco & Vanzetti, que Giuliano Montaldo fez em 1971. No julgamento dos dois imigrantes, num clima de forte xenofobia na Nova Inglaterra nos anos 20, o advogado de defesa interpretado por Milo O’Shea enfrenta um juiz absolutamente safado; ao final, ele reclama da parcialidade da corte, e fala uma frase da qual jamais me esqueci:

– “I’ll never set foot on a court again” – Jamais voltarei a pisar num tribunal.

Fascinante ver em O Veredito o mesmo ator fazendo exatamente o papel de um juiz safado.

         Sétima indicação de Paul Newman ao Oscar, sétima derrota

O filme teve indicações para cinco Oscars importantes – melhor filme, melhor direção, melhor ator para Paul Newman, melhor coadjuvante para James Mason, melhor roteiro adaptado para David Mamet. Não levou nada. Se algo fica menor com isso não é o filme, é o Oscar. (Os concorrentes à estatueta de melhor filme, naquele ano de 1982, foram E.T., o Extraterrestre, de Spielberg, Missing, de Costa-Gavras, Tootsie, de Sydney Pollack, e Gandhi, de Richard Attenborough. Este último levou os prêmios de filme, direção e ator para Ben Kingsley.)

Ainda o Oscar: a interpretação de Paul Newman como Frank Galvin deu a ele sua sétima indicação ao prêmio da Academia – e foi a sétima vez em que ele não levou. Três anos depois, a vetusta lhe daria um Oscar honorário. E em 1986, na sua oitava indicação, por A Cor do Dinheiro, de Martin Scorcese, ele finalmente levaria para casa a estatuetinha de gesso. E em 1994 teria sua nona indicação.

“Newman tem uma das suas melhores atuações como um advogado de Boston que chegou ao fundo do poço, até que um caso de negligência médica dá a ele a chance de restaurar sua auto-estima – enquanto luta pelo tipo de justiça em que acredita”, diz Leonard Maltin, que deu cotação máxima, 4 estrelas. “O diretor Lumet usa o silêncio tão eloqüentemente quanto o diálogo, e transforma uma história com várias brechas numa experiência carregada de emoção. Procure cuidadosamente Bruce Willis como um espectador na sala do tribunal.”

“Usa o silêncio tão eloqüentemente quanto o diálogo” é uma bela observação. Eu mesmo já havia apontado isso na tal cena passada em Nova York, em que não ouvimos o que os personagens estão dizendo. Agora, onde o Maltin foi achar brechas – loopholes – na trama, isso é um grande mistério. Não consigo ver um furo na história, acho tudo absolutamente perfeito.

         “O suspense é mais sobre a vida do personagem do que sobre o caso”

O prolixo e bom Roger Ebert – que também dá a cotação máxima de 4 estrelas para o filme – abre sua crítica apontando um outro momento do filme relacionado com a bebida:

“Há um momento em The Verdict em que Paul Newman entra num quarto e bate a porta e treme de ansiedade, com um grito silencioso de que não quer ninguém perto dele. Ninguém que tenha alguma vez tido uma ressaca forte ou precisado de um gole de bebida deixará de reconhecer o momento. É a chave de seu personagem em The Verdict, um filme sobre um alcoólatra que tenta juntar seus cacos para uma última tentativa de salvar sua auto-estima.”

“O roteiro de David Mamet é uma maravilha de bons diálogos, personagens sólidos, e uma estrutura que leva a uma grande cena de tribunal – como o gênero requer. Como drama de tribunal, The Verdict é um trabalho superior. Mas o diretor e o astro deste filme, Sidney Lumet e Paul Newman, parecem estar querendo algo mais; The Verdict é mais um estudo de personagem que um thriller, e o suspense oculto nesse filme é mais sobre a vida do próprio Galvin do que sobre seu caso mais recente.”

Competente Ebert. Vou em frente no texto dele:

“Frank Galvin dá a Newman a chance de ter uma de suas grandes atuações. Este é o primeiro filme em que Newman parece um tanto velho, um tanto cansado. Há momentos em que sua face bambeia e seus olhos parecem terrivelmente amargurados. Newman sempre foi um ator interessante, mas às vezes sua elasticidade, sua vitalidade cheia de juventude obscureciam sua atuação; ele tem a tendência de sempre parecer bem, mesmo quando o papel não exige isso. Desta vez, ele nos dá um Frank Galvin velho, exausto, de ressaca, tremendo (e heróico).”

E depois: “As atuações, o diálogo e a trama, tudo trabalha com a perfeição de uma máquina rara.”

         Atenção: spoiler – fala-se da tomada final do filme

Ahá! Que coisa sensacional. É por isso que, quando eu crescer, gostaria de escrever como Roger Ebert.

Ebert entendeu erradamente a tomada final.

Isso acontece com tudo mundo; eu, que estou a muitos anos-luz  de ser um Roger Ebert, não entendi, por exemplo, um filme de Giuseppe Tornatore – e já me malharam várias vezes por isso. Ebert poderia ter reescrito seu texto – mas não. Manteve o que escreveu quando viu o filme, e acrescentou depois uma nota explicativa.

O caso é tão fascinante que vou transcrever aqui o final do texto dele. Fala-se da tomada final do filme – portanto, se por acaso algum eventual leitor tiver chegado até aqui e não tiver visto o filme, melhor não ler o que vai abaixo.

Na última tomada de O Veredito, Frank Galvin está sozinho em seu escritório, uma caneca na mão, o telefone tocando sem parar. Sempre entendi, desde a primeira vez que vi o filme, que ele está tomando um café. Ebert entendeu que ele estava mamando um uiscão:

“Na grande cena final, Newman, ainda bebendo, descobre que se você mergulha na bebida a vitória tem o mesmo gosto da derrota.”

E aí vem a nota:

“Nota: Deixei este último parágrafo exatamente como o escrevi originalmente, porque foi assim que o filme me pareceu. Diversos leitores me escreveram argumentando que o copo era de café e que na opinião deles ele tinha parado de beber. Em 1994 tive a oportunidade de perguntar a Paul Newman, e ele disse: ‘Café’. Eu poderia argumentar que não há como provar o que está no copo; tudo depende de como o filme chegou até você. Minha leitura daquela cena é válida para mim, eu creio, mesmo se estiver errada. De alguma maneira, nós devemos completar todas as obras de arte com nossa própria imaginação.”

Que beleza, que maravilhosa demonstração de honestidade – e de humildade.

Tento, nestas minhas anotações, ser o mais honesto possível – e faço todo o possível para nunca ser orgulhoso de nada. Até porque o maior orgulho da minha vida, minha filha, é uma pessoa extraordinária por méritos que são só dela, e nada têm a ver comigo.

Então, como não bebo tanto quanto o personagem bebia, vou tomar uma cachaça por Roger Ebert, por Sidney Lumet, por David Mamet, por Paul Newman, por Frank Galvin, por Mary e por Fernanda.

Cheers!

O Veredito/The Verdict

De Sidney Lumet, EUA, 1982

Com Paul Newman (Frank Galvin), Charlotte Rampling (Laura Fischer), Jack Warden (Mickey Morrissey), James Mason (Ed Concannon), Milo O’Shea (juiz Hoyle), Edward Binns (bispo Brophy), Julie Bovasso (Maureen Rooney), Lindsay Crouse (Kaitlin Costello Price), Roxanne Hart (Sally Doneghy), Wesley Addy (Dr. Towler), 

James Handy (Kevin Doneghy)

Roteiro David Mamet

Baseado no livro de Barry Reed

Fotografia Andrzej Bartkowiak

Música Johnny Mandel

Produção 20th Century Fox

Cor, 129 min

R, ****

20 Comentários para “O Veredito / The Verdict”

  1. Cheers!

    Sabe uma das coisas que mais me dá prazer por seguir seu blog? Várias vezes ele me lembra coisas boas que já vivi e que não me recordo espontaneamente. Como esse filme de que gosto tanto. E como é bom pensar em Paul Newman que era tão hipnótico. Bjs

  2. Uma das coisas que dá prazer por fazer este site/blog é de vez em quando receber suas mensagens, Luciana!
    Um abraço.
    Sérgio

  3. Ah Sergio, fui hoje à locadora buscar um filme do Sidney Lumet e só tinha o último (Antes que o diabo…) e Assassinato no Expresso Oriente. Trouxe o policial, mas vou procurar O Veredito e 12 homens e 1 sentença em outras locadoras. Nossa forma de homenagear o grande diretor. Um abraço, S.

  4. Concordo. É um dos melhores filmes ja feitos e que dificilmente se vê em Lista. A cena a que vc se refere “No fundo do poço, o herói não consegue sequer levar o copo à boca” é memorável! Eu nem ligo para premiação em Oscar (mas não deixo de ver ) quando vejo que isso foi ignorado.
    Cada vez mais eu leio seu blog 🙂 Descobri ha pouco tempo e tenho lido dos mais antigos aos atuais. Gosto como voce comenta, porque o que o diferencia de um cinéfilo/chato/cult é que vc gosta de cinema, e consegue ver qualidade nas pequenas coisas.
    Parabéns!
    Tentei responder ao seu e-mail, para esclarecer: eden é mulher, o meu apelido que é confuso…. Se isso faz alguma diferença ….rsss

  5. Caro Sérgio,
    Por conta de uma feliz coincidência, li seu artigo hoje (sábado à noite)e o filme passou na televisão. Para mim foi uma alegria enorme. Não sei se é melhor assistir ao filme antes ou depois de ler sobre ele. Mas de uma coisa eu sei: quando se trata de suas palavras inteligentes e convincentes, eu prefiro ler antes, pois elas me ajudam a entender e apreciar o filme de uma forma mais completa. Fiquei especialmente emocionada com as palavras finais de Galvin para fechar sua defesa. Lembrei-me do também maravilhoso “12 Homens e uma Sentença”. Como é bom ver a justiça sendo feita. Se na vida não é sempre assim, ao menos em alguns filmes de Lumet, Sim! Um grande abraço dessa leitora que tanto te admira e preza.

  6. Oi, Sergio, esqueceu de mim? Não esclareceu minhas dúvidas acerca do filme vida dupla(fatalidade), protagonizado pelo Ronald Colman, estou esperando ansiosamente pela sua resposta. Amanhã devo ver o Veredito, mais um “dito” filme de tribunal, como parecia ser o fantástico muito mais que um crime, q de tribunal não tinha nada, era realmente uma mensagem a favor da justiça, mesmo q se deixe de lado os laços familiares e afetivos. E Glória, gosto de ler os comentários do Sérgio antes de ver o filme, enquanto o acompanho e depois tb, quando tiro minhas conclusões. Beijos. Guenia. http://www.sospesquisaerorschach.com.br.

  7. Andei muitos anos à procura do DVD deste filme e, finalmente, encontrei-o.
    Num site em que se compra e vende de tudo; eu já lá vendi um carro.
    O filme é magnífico, eu já o tinha visto no cinema e talvez na televisão.
    Há uma cena que ficou na minha memória: Galvin vai ao hospital pela segunda vez e tira 2 fotografias polaroid que pousa em cima da cama da vítima. As imagens vão surgindo lentamente e Galvin fica mesmerizado a olhar para elas. É aqui que algo acontece no seu íntimo, é aqui que Galvin decide acusar os culpados pela barbaridade cometida.
    Quanto à parte final da crónica de Roger Ebert não posso adiantar nada, já não está lá.
    Mas penso que Galvin deixa mesmo de beber e na caneca há café.

  8. Sérgio, hello.
    Muito Obrigado pelo texto do The Verdict. Kafka é incontornável. A minha mulher lembrou-se de detalhes e o teu texto está magnifico. Obrigado pelas horas que empregas na construção destas idéias. Have a great day.

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