O Solista / The Soloist

Nota: ★★★½

Anotação em 2010: Uma maravilha de filme. Uma bela elegia à solidariedade, à amizade, que é, sim, possível, mesmo em uma megalópole gigantesca, no meio da competição frenética, insana – contra o relógio, contra a saúde, contra o colega de trabalho, contra todos os semelhantes – em que nossa sociedade transformou a vida das pessoas.

Em tempos cínicos, de exaltação ao pessoal, ao umbigo, O Solista faz uma bela ode à amizade – mas faz mais. Exibe as chagas feias, brutais, horrorosas, da injustiça, e o pouco caso com que elas são em geral tratadas.

Mais ainda: ao tratar de frente a questão da miséria urbana, dos sem-teto, não simplifica, não paternaliza, não se arvora a ter soluções na manga.

E isso é um brilho absurdo. Porque quem disser que tem as soluções para esse problema tão complexo na manga é mentiroso, calhorda, mistificador.

         Uma história real – e o filme não se vende com isso

A frase “baseado em história real”, ou sua versão mais humilde, “inspirado em uma história real”, têm sido usadas por muitos filmes como ponto de venda, como frase de marketing – as pessoas gostam de histórias reais. Pois O Solista, ao contrário de 99% dos filmes baseados em histórias reais, não traz essa informação em letreiro no início do filme. Só ao final, depois de terminada a ação, letreiros nos falam da situação hoje dos personagens – e só os poucos loucos que prestam atenção aos créditos finais ficam sabendo que atuaram como consultores da produção Nathaniel Anthony Ayers Jr, Steve Lopez e Jennifer Ayers-Moore. Eles são personagens do filme. O roteiro do filme se baseia no livro escrito por Steve Lopez sobre Nathaniel.

É fascinante como O Solista se recusa a vender fácil uma das grandes qualidades que tem: o de ser a versão cinematográfica de uma história real.

A ação se passa em Los Angeles, depois de 2003 – é uma história recente demais. Que é Los Angeles é óbvio, por todos os motivos; que é 2003 ou depois, é muito claro: fala-se no governador Arnold Schwarzenegger. Steve Lopez era (na verdade e no filme) um colunista de um dos jornais de maior circulação nos Estados Unidos, o Los Angeles Times. Quando o filme começa, Steve Lopez (interpretado pelo excelente Robert Downey Jr.) acaba de ter um acidente – caiu da bicicleta, foi para o hospital com suspeita de algum dano cerebral.

Steve Lopez é o que em inglês chamam de columnist, colunista, mas isso não tem uma tradução exata no jornalismo brasileiro. No Brasil, o colunista é o sujeito que dá opiniões, faz análises – na verdade, no jornalismo brasileiro colunista é articulista. O jornalismo americano tem a figura do colunista que é o que a gente aqui chamaria de cronista, mas que é diferente do cronista que conhecemos. Lá, o tal do columnist é um jornalista vivido, experiente, que provou que é muito bom, e então adquire esse status maior: é ao mesmo tempo o que entendemos como articulista e um cronista – escreve sobre o que quer, dá sua visão pessoal, mas o seu texto precisa necessariamente ser em cima de fatos, de experiências. É uma espécie assim de reportagem com um viés pessoal. Um retratista da realidade, que se permite uma visão pessoal. Uma espécie assim de um cruzamento de Lourenço Diaféria com Valdir Sanches, se é que eu me conseguiria fazer entender pelos seres humanos, as pessoas não jornalistas.

E Steve Lopez é um columnist sério, que se leva a sério. Um belo dia, ainda se recuperando das feridas causadas pelo acidente da bicicleta, sai da redação, anda pelo centro de Los Angeles, e vê um mendigo tocando violino, um violino de apenas duas cordas.

Porque é sério, porque leva a sério o que faz, Steve Lopez tenta saber mais sobre aquele mendigo, Nathaniel Anthony Ayers Jr (Jamie Foxx, o ator que fez Ray Charles em Ray, excelente, extraordinário), que diz ter freqüentado a Juliard, a mais respeitada escola de música do país. Tentará se aproximar dele, ficar amigo dele – dará a ele de presente um violencelo, o instrumento de que Nathaniel mais gosta.

         Três filmes americanos recentes falam do mesmo tema

O Solista, que em parte é o retrato da amizade entre dois homens em tudo diferentes um do outro (em parte, porque é muito mais do que isso, ao abordar a questão dos sem-teto), me fez lembrar dois outros filmes recentes feitos nos Estados Unidos sobre exatamente o mesmo tema – a amizade, a solidariedade.

O Solista tem muito a ver com O Visitante e com Goodbye Solo. Em O Visitante, de Tom McCarthy, de 2007, um professor universitário de Connecticut, de uns 60 e poucos anos, sujeito extremamente solitário, um tanto ríspido, grosseiro, com seus alunos, e um tanto inapetente pelo trabalho, acaba se aproximando de Tarek, um jovem imigrante sírio, sem um tostão no banco mas cheio de energia, vontade e esperança. Em Goodbye Solo, de Ramin Bahrani, de 2008, mostra-se o encontro de um imigrante senegalês, sujeito tão pobre de dinheiro quanto rico de espírito, um falastrão, um livro aberto, que conta sua vida para qualquer um, com um americano fechado em copas, trancado dentro de si mesmo, que não quer ser incomodado, não quer que ninguém chegue perto dele.

O Solista, O Visitante e Goodbye Solo, três filmes americanos, e três filmes belíssimos, fazem crescer minha indignação com aquele tipo de gente que, de narizinho emproado, empinado, costuma dizer a seguinte frase: “Não gosto de cinema americano”.

Para começo de conversa, não existe essa entidade que os empertigadinhos chamam de o cinema americano, um cinema americano. Isso é uma peça de ficção, assim como qualquer tipo de generalização – os franceses são metidos, presunçosos, os italianos são românticos, passionais, os escandinavos são gélidos, os alemães são frios, metódicos, organizados, os mineiros são introspectivos, os cariocas são malandros, os baianos são preguiçosos, etc, etc, etc, etc. Toda e qualquer generalização é cega, é burra.

A verdade dos fatos é sempre necessariamente maior do que as simplificações.

São do “cinema americano” coisas tão díspares quanto Rambo e Apocalypse Now; Os Boinas Verdes/The Green Barets e Amargo Regresso/Coming Home – uns que defendem a violência e a guerra, outros que mostram a insanidade da guerra. Existem vários tipos de cinema feitos nos Estados Unidos – até porque lá trabalham diretores vindos de todas as partes do mundo. Existem vários tipos de filmes independentes, produções feitas com pouco dinheiro e muitas vezes com bastante talento; existem vários tipos de filmes mais comerciais, feitos em Hollywood – desde os sérios, profundos, honestos, até as maiores idiotices do tipo Duro de Matar, policiais fascistóides, ou comédias românticas babacas como Maluca Paixão, ou comédias escrachadas como Uma Comédia Nada Romântica ou American Pie.

Mas me estendi demais nessa digressão.

         Um belo elogio à imprensa séria, aos grandes jornais

O Solista faz também um belo elogio à imprensa séria, aos jornais, aos grandes jornais. E fala da grande crise que a imprensa enfrenta nos últimos anos, com o avanço do noticiário gratuito na internet. Na redação do Los Angeles Times, como nas redações de todos os jornais do mundo, fala-se em queda das tiragens, e da necessidade de cortar custos, de demitir pessoal.

Há uma cena emblemática sobre a crise dos jornais. Acontece bem no começo do filme: o jornalista Steve Lopez, um nome conhecido na cidade, por assinar sempre textos na primeira página do Los Angeles Times, está sendo atendido por uma garotinha jovem no hospital, ou laboratório de análises. Ao saber o nome de Steve Lopez, a garotinha – interpretada, numa participação especial, pela interessante Jena Malone – diz a ela:

– “Meu pai lê o que o senhor escreve todos os dias.”

Ao que o jornalista pergunta se ela o lê, e ela responde o que nove entre dez jovens responderiam:

– “Eu não leio jornal.”

Triste mundo cada vez mais cheio de mendigos sem-teto nas ruas e de jovens que não lêem jornal. Mas há algum consolo quando vemos filmes como este.

O Solista/The Soloist

De Joe Wright, EUA-Inglaterra-França, 2009

Com Robert Downey Jr. (Steve Lopez), Jamie Foxx (Nathaniel Ayers), Catherine Keener (Mary Weston), Tom Hollander (Graham Claydon), Lisa Gay Hamilton (Jennifer Ayers), Nelsan Ellis (David Carter)

Roteiro Susannah Grant

Baseado no livro The Soloist: A Lost Dream, an Unlikely Friendship, and the Redemptive Power of Music, de Steve Lopez

Música Dario Marianelli

Fotografia Seamus McGarvey

Montagem Paul Tothill

No DVD. Produção Dreamworks SKG, Universal Pictures, Studio Canal

Cor, 117 min

***1/2

13 Comentários para “O Solista / The Soloist”

  1. Olá Sérgio,
    pensando no jornalismo sério, tratado tão bela e sensivelmente nesse filme, lembrei-me do memorável “A Montanha dos Sete Abrutes” do genial Billy Wilder. Nesse último, o jornalista canastrão é capaz de vender a alma por uma boa reportagem. Acho que fica pra nós a lição (se é que o bom cinema deva ter tal pretensão),de que é melhor ler as reportagens, afinal, boas ou ruins, são elas que nos levam à ou nos tiram da ruína total. Lula e Dilma que o digam.

  2. Bom dia, Sergio!
    No mesmo dia em que vi “O Solista”, também vi o documentário “Onde Eu Moro”, sobre os sem-teto de Los Angeles, também na Netflix (foi coincidência). Parece que um completa o outro.

    Quanto ao cinema americano, é claro, tem filmes e artistas geniais (diretores, atores, atrizes, roteiristas, etc.) geniais. O problema que eu vejo hoje são muitos filmes que se repetem apenas visando bilheteria (super-heróis, refilmagens e pouca criatividade). Mas isso não invalida sua importância, sua história e aqueles que ainda fazem um bom cinema.

    Um abraço.
    Gilberto

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