O Grande Dia / Sveitabrúðkaup

Nota: ★★★☆

Anotação em 2010: Nem Mario Monicelli, em comédias amargas como Parente é Serpente, nem Robert Altman em Cerimônia de Casamento, foram tão longe. Acho que nenhum outro filme conseguiu juntar em uma única reunião familiar tantos problemas, tantas loucuras, tanto azar, tanto desencontro, tanto atropelo, tanta zorra quanto este O Grande Dia, escrito e dirigido pela islandesa Valdís Óskarsdóttir.

Problemas familiares que vêm à tona em uma grande reunião festiva já foram tema de centenas e centenas de filmes, em todos os lugares do mundo. Na verdade, alguns dos mais belos filmes da história usaram esse tema, das mais diferentes maneiras.

Mas é importante que fique claro: isto aqui é uma comédia. Bem feita, bem realizada, com belas atuações, personagens interessantes, bem delineados, mas é uma comédia – divertida, engraçada, que tem também um lado amargo, é claro. Mas não é, não pretende nem de longe ser um filme sério, pesado, denso, a analisar e discutir sobre as duras feridas provocadas pela vida em família.

Nada a ver com os italianos De Punhos Cerrados, de Marco Bellochio, e Vagas Estrelas da Ursa, de Visconti, o neo-zelandês Chuva de Verão, de Christine Jeffs, os franceses Um Conto de Natal, de Arnaud Desplechin, Há Tanto Tempo que te Amo, de Philippe Claudel, e Três Irmãs, de Danièle  Thompson, o americano O Casamento de Rachel, de Jonathan Demme, o checo Algo como a Felicidade, de Bohdan Slama, os dinamarqueses Depois do Casamento, de Susanne Blier, e Festa de Família, de Thomas Vinterberg – só para citar alguns filmes de diferentes nacionalidades que tratam seriamente de traumas familiares (e, por coincidência, já foram comentados neste site).

O Grande Dia é uma comédia, uma gostosa comédia. Mostra problemas não para que raciocinemos sobre eles, para que avaliemos as semelhanças com os nossos próprios problemas familiares, e sim para que a gente ria deles. E é impossível deixar de rir com tantos e tantos problemas das duas famílias que se reúnem no dia do casamento de Inga (Nanna Kristín Magnúsdóttir) e Bardi (Björn Hlynur Haraldsson).

         A noiva Inga queria um casamento charmoso, no campo

Inga queria um casamento charmoso, diferente, numa igrejinha no campo. E então, quando a ação começa, temos aquela agitação toda da noiva se preparando, e, estacionados diante da casa dela, dois ônibus, para levar os convidados para a idílica cerimônia no campo, longe deste insensato mundo (embora a Islândia toda, a rigor, já fique muito distante do mundo – ou não tanto, como andou provando por duas vezes bem recentemente).

Temos os pais e a irmã de Bardi, o noivo. Veremos depois que o pai bebe bastante – mas este é o menor problema da família.

Temos os pais e o irmão de Inga, a noiva. Os pais estão separados, e a mãe, que também bebe bastante, está namorando um sujeito mais novo que por sua vez a trai.

Temos Lára (Nína Dögg Filippusdóttir), a maior amiga de Inga, que leva para o casamento – planejado como cerimônia íntima, para poucas pessoas – a avó aparentemente já meio lelé e mais um amigo que ninguém nas famílias da noiva e do noivo conhecia. Mas esse não é o maior problema envolvendo Lára que vai surgir ao longo do dia.

Temos Stefán (Árni Pétur Guðjónsson), primo do pai do noivo, sujeito que acabava de voltar à Islândia depois de 25 anos fora, e que surge inesperadamente com um amigo, que ele apresenta como sendo um psicólogo, mas que na verdade é outra coisa. Mas o fato de ele ter aparecido sem ter sido convidado nem pela noiva nem pelo noivo é o menor dos problemas que virão à tona envolvendo a figura.

         Quando alguma coisa pode dar errado, vai dar errado

A diretora construiu sua trama aparentemente baseado em um daqueles artigos da Lei de Murphy, segundo o qual quando uma coisa pode dar errado, dá errado. Tudo, absolutamente tudo, dá errado no grande dia da vida da pobre Inga.

Interessante país, a Islândia. Até uns três anos atrás, as únicas coisas que se sabiam sobre a Islândia eram que aquela ilhota lá bem no alto do Atlântico, mais perto do Pólo Norte do que de Paris ou Londres, tinha gêisers, e era o país que deu origem a Björk, aquele ser que às vezes parece mais próximo de Marte do que da Lua. De repente, em outubro de 2008, na mesma época em que o Lehman Brothers ruía, sob o impacto da selvageria do capitalismo financeiro mundial e da irresponsabilidade com que o governo Bush deixou o pântano das subprimes minar a economia americana, o sistema financeiro da Islândia implodiu. A crise virava global. E, em abril de 2010, um dos vulcões islandeses, um troço de nome absolutamente impronunciável por qualquer ser humano que não tenha nascido naquela ilha, causou o maior caos da aviação mundial, capaz de deixar no chinelo o caos aéreo que os brasileiros tinham conheciudo devido à incompetência do governo Lula.

O filme da diretora Valdís Óskarsdóttir, surgido entre a bancarrota financeira da Islândia e o caos provocado pelo vulcão, é quase tão arrasador quanto as duas outras catástrofes.

         Os diversos personagens são todos bem construídos

Entre os muitos diálogos gostosos, divertidos, do filme, há um ótimo entre o amigo de Lára que ninguém das famílias conhecia e a irmã do noivo. Acontece em uma das paradas dos dois ônibus que carregam os convidados pelas estradas no meio das extraordinárias paisagens da Islândia. O rapaz elogia as paisagens; a garota acha estranho – diz que não vê nada de bonito naquilo, grandes campos, montanhas imensas, nenhuma casa, nenhuma marca de civilização humana à vista. Ele pergunta: ué, você não acha bonito? Ela reafirma que não, não acha aquilo bonito coisa nenhuma. E ele diz: é, de fato não é bonito, não; eu só estava tentando puxar conversa.

O roteiro, a direção e os próprios atores conseguiram de fato criar bons personagens – e são vários, são uns dez ou mais, que a gente fica conhecendo ao mesmo tempo, e até demora um tanto para entender direito quem é quem. Um pouco à la os filmes de Altman, que citei lá em cima. Não é muita gente que consegue criar tantos e tão diversos personagens e construi-los com solidez, eficácia.

Mary gostou especialmente da avó de Lára. Eu me diverti com a avó de Lára, é claro – mas Mary me fez ver que a personagem dela é muito melhor, muito mais rica do que eu havia percebido. Para mim, tinha parecido só uma velhinha engraçada, às vezes esquecida de tudo (uma hora lá, ela se vira para a noiva e pergunta por que está vestida tão bem, como se fosse para festa), às vezes nem tanto. Imaginei que era uma velhinha com começo de Alzheimer, ou simplesmente com começo do que antigamente a gente chamava genericamente de esclerose. Mary viu mais longe: a avó de Lára é uma grande safada, esperta; ela usa o fato de ser velha e parecer estar com início de Alzheimer ou esclerose ou o que for para se divertir, fazer o que bem entender. Ligou o foda-se e industrializa a própria idade, a danada, a marota.

É isso mesmo. É bem isso mesmo – uma amostra de como o filme soube construir bons personagens.

         Toda generalização, todo estereótipo é burro

Lá no começo, citei Monicelli e sua comédia sobre parentes serpentes. Não foi à toa a citação de um italiano.

Depois de ver esse filme islandês, fica ainda mais forte aquela velhíssima noção de que essas generalizações que costumamos fazer, essas simplificações, esses estereótipos em relação a nacionalidades, a regiões – os franceses são metidos, presunçosos, os italianos são românticos, passionais, os escandinavos são gélidos, os alemães são frios, metódicos, organizados, os mineiros são introspectivos, os cariocas são malandros, os baianos são preguiçosos, etc, etc, etc, etc – são a maior besteira que pode existir. Há gente metida, presunçosa, romântica, passional, gélida, metódica, organizada, introspectiva, malandra, preguiçosa, em absolutamente todo lugar sobre a face da terra.

Isso para não entrar no terreno mais minado ainda que é a generalização, a simplificação, a estereotipação por “raças” – o branco é isso, o preto é aquilo, o índio é aquilo –, até porque, como todo mundo sabe, menos os racialistas, os supremacistas de todos os tipos, dos nazistas ao povo da Ku-Klux-Klan, passando pelos defensores das cotas e das quilombolas e privilégios do governo Lula, só existe uma raça.

Os islandeses que esta deliciosa comédia nos mostra são tão passionais quanto os italianos de Monicelli ou os espanhóis de Almodóvar.

O filme, a rigor, só tem um grande defeito: a câmara da diretora Valdís Óskarsdóttir é nervosa demais. Quase todas as tomadas são feitas com câmara de mão, e uma câmara nervosa, que mexe demais, deixa o espectador meio tonto.

         Os dois filmes islandeses que vi são road movies. Logo…

E, para encerrar, é assim. Se eu fosse generalizar, simplificar, estereotipar as coisas a partir das minhas duas experiências com o cinema islandês (além deste filme aqui, vi também Filhos da Natureza), eu poderia dizer o seguinte: os islandeses adoram um road movie. Ou mais ainda: todos os filmes que eles fazem são road movies.

O que me faz lembrar um chefe que tive, sujeito admirável, jornalista de brilho como pouquíssimos, mas dado a um exagero, a uma espécie assim de plural majestático não na primeira pessoa, mas na terceira. Se ele ouvia a opinião de um professor da PUC (onde fazia uma pós-graduação, ou doutorado, uma dessas coisas aí), chegava no jornal, e depois na revista, e dizia: “Tá todo mundo dizendo que…”, “Na cidade não se fala em outra coisa a não ser que…” Uma figura maravilhosa – mas esta é outra história, como dizia o personagem de Irma La Douce.

O Grande Dia é um gostoso filme que todos deveriam ver.

O Grande Dia/Sveitabrúðkaup

De Valdís Óskarsdóttir, Islândia, 2008

Com Nína Dögg Filippusdóttir (Lára), Nanna Kristín Magnúsdóttir (Inga), Björn Hlynur Haraldsson (Barði), Ingvar Eggert Sigurðsson (Brynjólfur), Hanna María Karlsdóttir (Imba), Erlendur Eiríksson (Síði), Ágústa Eva Erlendsdóttir (Auður)

Argumento e roteiro Valdís Óskarsdóttir

Fotografia Anthony Dod Mantle

Produção Mystery Island, Duo Productions

Cor, 99 min

***

Título em inglês: Country Wedding. Tìtulo na França: Mariage à l’islandaise

7 Comentários para “O Grande Dia / Sveitabrúðkaup”

  1. Pô, Renan, muito obrigado pela mensagem. Vou ver se pego “Parente é Serpente” para rever e comentar.
    Um abraço.

  2. Um filme interessante, e muito engraçado.

    Porém, Valdís Óskarsdóttir é uma mulher. Sobrenomes islandeses e faroeses que terminam em ‘dóttir’ indica que a pessoa é uma mulher, ‘son’ indica que a pessoa é um homem. Isso porque ‘dóttir’ é ‘filha e ‘son’, filho. Ou seja, seu nome quer dizer Valdís, filha de Óskar.

  3. Opa! Muitíssimo obrigado por apontar o meu erro crasso, Julia. Já corrigi o texto.
    Muitíssimo obrigado!
    Sérgio

  4. olá, eu me interesso muito pela cultura islandesa, e queria muito saber onde encontrar esse filme e Filhos da natureza. Como você obteve essas obras?

  5. Aluguei os DVDs dos dois filmes na locadora que freqüento, a 2001 Vídeo, de São Paulo. Mas é de se imaginar que outras locadoras também tenham cópias. Você já pesquisou em sites como o da própria 2001 (2001video.com.br), o CD Point (cdpoint.com.br), a Fnac, a Livraria Cultura? Em último caso, há sempre o amazom.com, que costuma ter tudo.
    Bem, boa sorte!
    Sérgio

  6. Gostei muito também na época que vi no cinemax, que sempre mostra um ou outro filme islandês , sei lá por qual motivo. Mas entre outras fitas de lá, assisti Estrada de Rei que foi dirigido pela mesma Valdis e O Ciúme Mora ao lado e asseguro que ambos não são road movies muito embora divertidíssimos também.

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