Filhos de Hiroshima / Gembaku no ko

Nota: ★★★☆

Anotação em 2010: Filhos de Hiroshima é um filme de grande importância. Mas, mesmo deixando de lado a importância histórica, é um filme forte, poderoso, que causa impacto – e também um tanto estranho, desconcertante.

Feito em 1952 e exibido no Festival de Cannes, revelou ao mundo Kaneto Shindô, que viria a ser um dos maiores cineastas do Japão e do mundo. Era seu terceiro filme como diretor, e, antes, já havia escrito roteiros para filmes de Kimibasuro Yoshimura, Kenji Mizoguchi e Kon Ichikawa. Nasceu em 1912, em Hiroshima, e começou no cinema como diretor de arte, ainda em 1935, antes do início da Segunda Guerra Mundial. Continuou trabalhando ao longo da guerra e, em 1950, criou uma pequena companhia produtora de filmes, juntamente com o diretor Yoshimura e a atriz Nobuko Otowa. A atriz participou de vários dos filmes do diretor – é a protagonista de Filhos de Hiroshima.

O iMDB registra 158 filmes em que Kaneto Shindô trabalhou como roteirista, e 45 como diretor. Está hoje com 98 anos, e ainda na ativa; fez um filme em 2008, e prepara outro com lançamento previsto para 2011.

Diz dele Jean Tulard, em seu Dicionário de Cinema: “Realizador de duas faces: por um lado A Ilha Nua, o neo-realismo, a vida cotidiana de agricultores pobres; por outro Onibaba, o fantástico e a sensualidade através da história de uma mãe que não pode suportar que sua nora durma com o amigo de seu filho, morto na guerra.”

Fez de tudo – de terror a realismo fantástico, passando por comédias.

Não um estrondo, mas um gemido; contra a bomba, um punhal

Mas, em Filhos de Hiroshima, o que choca é a simplicidade, o tom menor. De um cineasta nascido exatamente na cidade onde os americanos explodiram a primeira bomba atômica em uma guerra, e em um filme feito apenas sete anos depois da brutal tragédia que chocou o mundo inteiro no dia 6 de agosto de 1945 (cerca de 80 mil mortos diretamente pela explosão da bomba, de 90 mil a 140 mil mortos no total em conseqüência da radiação, 70% dos prédios da cidade destruídos), seria de se esperar uma epopéia, um afresco, uma obra em tom maior, um panfletaço irado, virulentíssimo.

Pois Kaneto Shindô fez um filme simples, pequeno. Não uma sinfonia, mas uma peça de câmara para poucos instrumentos. Assim que terminei de ver, me ocorreu que é um filme muito, mas muito próximo das obras de história e atmosfera mais simples do neo-realismo italiano – como O Teto ou Ladrão de Bicicletas, de Vittorio De Sica, 

É, sim, um panfleto, é claro – mas escrito em tom quase suave. Sem berros, sem estridência. Me ocorre agora que Kaneto Shindô respondeu à primeira destruição de uma cidade por uma bomba atômica, e exatamente a sua cidade natal, com um silencioso punhal.

Um punhal afiado, sim – mas silencioso. Quase manso, quase suave. É, para usar a imagem do poeta, um panfleto que não vem com um estrondo, mas com um gemido.

         As marcas da bomba estão em cada canto, em cada rosto

O filme acompanha alguns dias na vida de uma jovem professora, Takako (interpretada por Nobuko Otowa, a companheira freqüente do diretor em seus filmes). Quando a ação começa, Takako está se despedindo dos alunos, às vésperas de um período de férias. A jovem mora com tios, em uma ilha. Vai, nos primeiros dias de suas férias, viajar até Hiroshima, sua cidade natal, que não visita faz quatro anos.

Em Hiroshima, vai se encontrar com uma antiga colega, na casa de quem ficará hospedada, com um homem que havia trabalhado para seu pai, e com três ex-alunos do jardim de infância.

E essa é toda a trama do filme: o diretor Shindô nos leva para conhecer as casas que Takako visita; são situações simples, comuns, o dia a dia de pessoas simples, humildes.

Claro, as marcas da bomba estão em cada canto, em cada rosto, em cada história das pessoas que Takako encontra. Há um rápido flashback em que vemos a então garotinha Takako convivendo com os pais, e depois outro flashback com o relógio parando exatamente às 8h15 da manhã daquele dia 6 de agosto – o horário exato em que o bombardeiro B-29 chamado Enola Gay soltou sobre Hiroshima a bomba atômica Little Boy. Vemos então uma daquelas imagens do cogumelo de fumaça que se formou após a explosão.

Mas isso é apresentado rapidamente, muito rapidamente. A narrativa se concentra no hoje, 1952, sete anos após a bomba.

         Rostos de crianças, muitos rostos de crianças

Há explicitude, sim. A maior delas é o personagem do homem que foi empregado do pai de Takako, Iwakichi (interpretado por Osamu Takizawa). A jovem professora está andando pelas ruas de Hiroshima quando reconhece Iwakichi. Com o rosto cruelmente desfigurado pela radiação, quase cego, ele hoje é um mendigo – e, ao ver a filha do antigo patrão, morre de vergonha, recusa-se a falar com ela. Mas a moça insiste, insiste, e o homem cede; vêem-se várias vezes, durante a estadia de Takako em Hiroshima. Com a bomba, Iwakichi perdeu toda a família, com exceção de um netinho, Taro (na foto abaixo), que hoje vive num orfanato.

Takako irá até o orfanato – e Shindô mostra as crianças, os rostos das crianças, enquanto o administrador do lugar conta para a jovem professora e para os espectadores que Hiroshima é a cidade japonesa com maior número de órfãos da guerra, mais que Tóquio e Osaka, cidades imensamente mais populosas.

Ao longo de todo o filme, a câmara do diretor focaliza crianças – crianças nas ruas ainda cheias de escombros, crianças nas ruas de casas humildes reconstruídas depois da tragédia, crianças nadando num rio que banha a cidade.

A fotografia em preto-e-branco é magistral, belíssima.

O rosto desfigurado e a miséria de Iwakichi são, sem dúvida, uma explicitude chocante, um tapa na cara do espectador. Mas os tapas mais dolorosos vêm de forma bem mais sutil em duas seqüências extraordinárias. Numa, Takako e sua colega professora estão batendo papo na casa simples mas decente desta última; uma conversa normal, sobre coisas do dia a dia. Surge, na conversa absolutamente corriqueira, a informação de que a colega de Takako é estéril, provavelmente como efeito da radiação – e o rosto da visitante é tomado de pavor.     

Mais tarde, Takako está andando na rua com um de seus ex-alunos, e ouve-se o ruído de um avião. Um ruído, só o ruído – e as pessoas tremem de pavor. 

Belo filme. Cortante como punhal afiado.

Filhos de Hiroshima/Gembaku no ko

De Kaneto Shindô, Japão, 1952

Com Nobuko Otowa (Takako Ishikawa), Osamu Takizawa (Iwakichi), Niwa Saito (Natsue Morikawa), Tsuneko Yamanaka, Shinya Ofuji, Takashi Ito  

Argumento e roteiro Kaneto Shindô

Fotografia Takeo Itô (Takeo Itchi)

Música Akira Ifukube   

Produção Kindai Eiga Kyokai. DVD Lume

P&B, 97 min 

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