Bons Costumes / Easy Virtue

Nota: ★★★½

Anotação em 2010: Uma beleza, uma maravilha de filme. Baseado numa peça escrita em 1924 pelo homem de todas as artes Noël Coward sobre choque cultural e a profunda hipocrisia da alta sociedade inglesa, é uma produção requintada, suntuosa, de visual estonteante.

É daqueles filmes que conquistam o espectador de imediato, de bate-pronto, na primeira seqüência, nos primeiros minutos. É um escândalo de talento. Enquanto ouvimos “Mad About the Boy”, a mais famosa das mais de 300 canções compostas por Noël Coward, vemos imagens em preto-e-branco sendo projetadas numa tela, como se fossem de um daqueles cinejornais que antecediam o filme principal. Há um letreiro no cinejornal: “Surpresa no Grand Prix de Monte Carlo” – e as cenas são de uma corrida de carros que hoje parecem quase pré-históricos; veremos depois que a ação se passa em 1932. A câmara mostra o vencedor chegando ao final da prova, o carro sendo cercado por fotógrafos, jornalistas, curiosos – o cinejornal passa em velocidade maior do que os tradicionais 24 quadros por segundo, como se fossem aquelas comédias do cinema mudo. O vencedor tira a touca-capacete e – aí está a surpresa – é uma mulher! A mulher, interpretada por uma Jessica Biel de cabelos louros platinados, sorri um sorriso aberto, cheio de grandes dentes, acena para a multidão. A câmara mostra um rapaz bonito no meio da multidão, olhando encantado para a moça; a moça percebe o rapaz no meio da multidão, os olhares se cruzam – e, de repente, os gestos dela e dele ficam na velocidade normal, enquanto os demais movimentos estão todos acelerados.

Uma grande sacada, uma beleza de efeito, um visual estupendo – um homem e uma mulher se descobrem na multidão, e é como se apenas eles existissem no mundo. Mestre Robert Wise tinha tido uma sacada como essa em West Side Story, de 1961: na cena do baile em que se vêem pela primeira Maria e Tony, o Romeu e a Julieta nova-iorquinos do musical criado por Jerome Robbins, Arthur Laurents e Leonard Bernstein, o resto do mundo fica flu, some numa espécie de neblina, e só Maria e Tony apareciam nítidos, jovens e belos, longe deste insensato mundo.

O talentoso garoto inglês Joe Wright fez coisa semelhante em Orgulho e Preconceito, de 2005: no segundo baile mostrado no filme, de repente, num passe de mágica, como respondendo ao toque de uma varinha de condão, todos os demais dançarinos e os espectadores, todo o resto da humanidade desaparece, e Lizzie e Darcy, os personagens criados por Jane Austen 200 anos atrás, ficam sozinhos no mundo.

O iMDB traz um parágrafo com a explicação técnica para essa seqüência belíssima. “Na cena do passado em Monte Carlo que abre o filme, quando Larita vê John pela primeira vez, os movimentos dela e de John parecem mais lentos, enquanto o resto dos atores age numa velocidade ‘normal’, isto é, em velocidade de cinejornal antigo. Isso foi conseguido filmando a multidão, Larita, John, o fundo da cena e os mecânicos em primeiro plano separadamente, contra tela verde, e juntando todos depois em diferentes velocidades”.

         Fogos de artifício para avisar: é um filme de visual estupendo

Logo depois dessa seqüência tão curta, tão rápida quanto brilhante, surge um desenho em estilo anos 20 com o título original tanto da peça de Noël Coward quanto do filme, Easy Virtue, e no qual aparece um casal; o desenho funde-se com uma imagem real de Larita, a personagem de Jessica Biel, e John, interpretado por Ben Barnes, e a imagem real funde-se a um fundo amarelo de desenho.

Nos três, cinco primeiros minutos deste filme, o diretor Stephan Elliott berra para o espectador: vocês vão ver um filme de visual extraordinário.

Não costumo gostar de filmes em que o diretor solta fogos de artifício e chama a atenção do espectador para como ele é bom, sensacional. Mas o visual deste filme é de fato esplendoroso. Não dá pra reclamar.

Corta, e estamos numa daquelas ricas propriedades rurais da Inglaterra. Vamos conhecer a família de John Whittaker, o rapaz que vimos em Monte Carlo se apaixonando pela piloto de carros de corrida Larita Huntington, americana de Detroit, o berço mundial da indústria automobilística.

As duas irmãs de John são, cada uma à sua maneira, umas bobocas. Marion (Katherine Parkinson) alimenta-se da ilusão de que um dia um rapaz que sumiu no mundo voltará para se casar com ela. Hilda (Kimberley Nixon) alimenta-se da ilusão de que Philip (Christian Brassington), o filho do rico vizinho, um dia vai se casar com ela. A mãe, Veronica (interpretada pela maravilhosa Kristin Scott Thomas), alimentava-se, até então, da ilusão de que seu filho John se casaria com Sarah (Charlote Riley), irmã de Philip, filha de Lord Hurst, o vizinho rico – e o casamento seria a salvação da família, porque os Whittaker, embora possuam aquela belíssima propriedade, não têm mais dinheiro algum.

A ilusão de Veronica vira fumaça com a notícia de que John, após uma paixão fulminante à primeira vista com uma americana que acabara de conhecer em Monte Carlo, casara-se com ela.

Na família que vive de ilusões, o pai, o coronel Jim Whittaker (interpretado pelo sempre bom Colin Firth), não tem ilusão alguma, esperança alguma, ânimo algum; veterano da Grande Guerra, na qual viu todo tipo de atrocidade possível, perdeu todo o interesse pela vida.

E eis que chega àquela infeliz mansão o casal de pombinhos. Vai ser uma tremenda guerra. De um lado, uma mulher bela, charmosa, jovem, moderna, com vida própria, divorciada, cheia de vida; de outro, uma bruxa, uma bruaca, uma monstrenga, apegada a tradições sem sentido, um passado de glórias que não existem mais – e cheia de ódio pela outra que roubou seu filhinho querido e impediu seu casamento-salva-vidas com a moça rica.

É um choque cultural gigantesco – a mulher conservadora da Inglaterra rural contra a nova mulher moderna do Novo Mundo.

         A peça já havia sido filmada pelo jovem Hitchcock

Noël Coward (1899-1973) escreveu Easy Virtue, uma peça em três atos, em 1924, aos 25 anos de idade; foi sua 16ª peça, e ele já era famoso e bem sucedido. Easy Virtue foi encenada em Nova York em 1925 e no West End de Londres em 1926. Tem sido reencenada diversas vezes. Virou filme pela primeira vez em 1928, sob a direção de um jovem promissor chamado Alfred Hitchcock. Sim, sim, ele mesmo. O próprio.

 

Na sua autobiografia, Present Indicative, Coward escreveu que seu objetivo foi apresentar uma comédia na estrutura de uma tragédia, “para comparar a mulher déclassée de hoje com a mais empolada semi-mundana dos anos 1890” – e, em suma, para atacar de frente a atitude da mãe e das irmãs de John Whittaker. (Déclassée, que a Wikipedia em inglês usa em francês, é exatamente o que a palavra indica: que caiu de status ou classe social.)

O filme aparentemente foi bastante fiel às intenções de Noël Coward: a Veronica Whittaker que Kristin Scott Thomas cria é um personagem desagradável, odioso, hipócrita – disgusting, diriam seus conterrâneos. E a Larita de Jessica Biel (essa moça que tem feito um tremendo e crescente sucesso) é o oposto dela – é simpática, boa gente, uma graça de pessoa.

O diretor Stephan Elliot, um australiano nascido em 1964, é homem de poucos filmes – e dos mais variados estilos. Dirigiu apenas cinco, num período de 15 anos. Seu segundo filme foi o ótimo Priscilla, a Rainha do Deserto, um road movie sobre um troupe de drag queens que atravessa a Austrália. Antes deste Bons Costumes, havia ficado um longo período sem dirigir. Seu filme anterior é de 1999, e, por uma grande coincidência, eu o vi recentemente, Sedução Fatal/Eye of the Beholder. É um estranho thriller sobre um investigador que passa a ter uma obsessão por uma assassina em série; a história me pareceu sem lógica, mas, apesar disso, o filme é fascinante.

Neste aqui, ele acertou tudo. É um belo filme.

Bons Costumes/Easy Virtue

De Stephan Elliott, Inglaterra-EUA, 2008

Com Jessica Biel (Larita Huntington), Ben Barnes (John Whittaker), Colin Firth (Coronel Jim Whittaker), Kristin Scott Thomas (Veronica Whittaker), Kimberley Nixon (Hilda Whittaker), Kris Marshall (Furber), Katherine Parkinson (Marion Whittaker), Pip Torrens (Lord Hurst), Christian Brassington (Philip Hurst), Charlote Riley (Sarah Hurst)

Roteiro Stephan Elliott e Sheridan Jobbins

Baseado na peça Easy Virtue, de Noël Coward

Fotografia Martin Kenzie

Música Maruis de Vries

Com canções de Noël Coward e Cole Porter

Produção Ealing Studios, BBC Films, Fragile Films. Distribuição Sony Pictures Classics.

Cor, 93 min

***1/2

10 Comentários para “Bons Costumes / Easy Virtue”

  1. Que “leva” de filmes, em?
    BONS COSTUMES,CASAMENTO SILENCIOSO,SIMPLESMENTE COMPLICCADO,EDUCAçÃO.
    Estou me arrepiando de vontade de assistir a todos êles. Devagarinho farei isto. Seus comentários estão maravilhosos!

  2. O seu comentário está extraordinário – vi Easy Virtue agora, pela HBO e vou procurá-lo em DVD. Imperdível. Escrevo impetuosamente, sem rascunho e até mesmo sem pensar e depois passo pro Google procurando a atriz que faz Larita. Mas escrevo exclusivamente para RECOMENDAR – é o tipo do filme que encanta por tudo, é belo, é solene, é hilário, é sutil, tudo, tudo. E a cena do tango?! ganha daquela do Al Pacino, não? Enfim, dos raros que a gente não quer perder nem o final dos letreiros, com uma música completamente impecável, vivaaaaaaa!!!!!!!!!!!!!!!!

  3. Pela idade, vou pouco (atualmente) ao cinema. Vi na NET e gostei muito. Até vi duas vezes. Aprecio filmes que analisam o coportamento humano, todas as suas sutilezas,hipocrisias, tudo enfim. Os atores também são muito bons, algus pertencem a minha categoria de preferidos….

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