A Estrada / The Road

Nota: ★★★☆

Anotação em 2010: As distopias – as anti-utopias, as histórias que imaginam um futuro negro – são, por definição, apavorantes, sombrias. Mas este filme aqui bate recordes; é um dos filmes mais apavorantes, sombrios, que vi nos últimos tempos. É absolutamente assustador.

Comparado com esse filme, 1984, de George Orwell, é suave, quase otimista.

Não há, no início, uma explicação sobre o que aconteceu – se foi uma guerra atômica, se foram as mudanças climáticas –, nem se fala em data, mas parece um futuro apavorantemente próximo. Estamos depois do apocalipse, depois do fim do mundo; boa parte da população mundial foi dizimada. A voz em off do narrador – Viggo Mortensen, que faz o protagonista, um homem sem nome; os personagens não têm nome – só informa que os relógios todos pararam à 1h17.

Este é o texto inicial do narrador:

– “Os relógios pararam à 1h17 numa manhã. Houve um longo e forte clarão, e depois uma série de abalos menores. Acho que é novembro, mas não tenho certeza. Não tenho um calendário faz anos. Cada dia fica mais cinzento que o dia anterior. Cada noite fica mais escura – além da escuridão. Fica mais frio a cada semana, enquanto o mundo vai morrendo devagar. Nenhum animal sobreviveu. Todas as plantações acabaram faz tempo. Em breve todas as árvores do mundo terão caído. As estradas têm refugiados que empurram carretas e gangues armadas à procura de combustível e comida. Durante um ano, houve incêndios nas montanhas e um canto insano. Tem havido canibalismo. Canibalismo é o grande medo. Minha maior preocupação é comida. Sempre a comida. Comida, o frio e nossos sapatos. Às vezes eu conto para o garoto velhas histórias de coração e justiça – embora seja difícil lembrar delas. Tudo que sei é que o garoto é minha garantia e, se ele não for a palavra de Deus, então Deus nunca falou.”

         Imagens aterradoras de um mundo que perdeu as cores

Enquanto vamos ouvindo esse relato – apresentado com a voz pausada, com momentos de silêncio entre uma frase e outra –, vemos um cenário de terra arrasada, o pós-apocalipse: carros que apodrecem, abandonados, junto de estradas; árvores sem uma folha sequer, os galhos esturricados; de vez em quanto há tremores de terra.

Não há cor forte – são só tons de cinza, o céu cinza, o chão cinza.

No meio dessa absoluta desolação, o homem e o garoto caminham, agasalhados em andrajos, sujos, maltrapilhos.

É o horror dos horrores, o inferno na Terra.

Antes dessas imagens, há algumas breves tomadas de um mundo colorido, o mundo tal como o conhecemos, e aparece uma mulher de beleza radiante – a mulher do homem sem nome interpretado por Viggo Mortensen, mãe do garoto sem nome que agora está com 10, 12 anos, interpretado por Kodi Smit-McPhee. A mulher sem nome vem na pele estonteante de Charlize Theron. Com muita competência, o filme deixa claro que aquelas imagens são memórias, sonhos, pesadelos do protagonista – imagens de antes da hecatombe. A mulher não existe mais, as cores não existem mais. Temos o homem e seu filho, andando rumo ao litoral e ao Sul, à procura de um clima mais quente, em meio àquele mundo destruído, fugindo dos bandos armados de canibais.

Ao longo dos 110 minutos de filme, a ação vai se concentrar nos dois, o homem e o garoto. De vez em quando veremos uma ou outra imagem da mãe, através das lembranças do homem – mas Charlize Theron, Robert Duvall, Guy Pearce e os demais atores têm participações pequenas, de apenas alguns minutos cada um. Tudo é em torno dos dois personagens centrais, o pai e o garoto.

         Um visual esplêndio mostra um mundo chocante, aterrador

O trabalho do diretor de fotografia, do diretor de arte, é tão chocantemente impressionante quanto a história que o filme narra. O mundo sem cor, o mundo depois do fim do mundo que o diretor John Hillcoat nos apresenta é extraordinariamente vívido, o visual foi esplendidamente criado.

Chocante, aterrador.

Bem feitíssimo, A Estrada não é um filme para todos os gostos. Pessoas de nervos mais sensíveis deveriam evitá-lo. Crianças não deveriam vê-lo, acho eu. É forte demais.

Outras distopias são também terríveis. Mas esta aqui é mais.

Fiquei pensando em outras distopias, outros filmes que imaginam o mundo após o apocalipse. O próprio 1984, filmado por Michael Radford exatamente em 1984, com Richard Burton e John Hurt. Filhos da Esperança/Children of Men, de Alfonso Cuarón, sobre um mundo em que a humanidade não tem mais filhos. Laranja Mecânica, de Kubrick, o futuro em que os jovens se divertem com a ultra-violência. Eu Sou a Lenda, passado numa Nova York deserta de gente. Fim dos Tempos/The Happening, de M. Night Shyamalan, em que as pessoas de repente começam a se suicidar. A Hora Final/On the Beach, de Stanley Kramer, uma visão triste e realista, nada fantasiosa, do pós-holocausto nuclear numa Austrália ainda sobrevivente. Waterworld, de Kevin Reynolds, o mundo tomado pelas águas dos oceanos depois do degelo das calotas polares.

São, todas elas, histórias terríveis. Mas acho que este filme aqui é o mais violentamente sombrio de todos.

O roteiro foi escrito por Joe Penhall, um nome que eu não conhecia; o iMDB registra nove filmes com roteiros de autoria dele. Um deles é Enduring Love, de 2004, com Daniel Craig e Samantha Morton, baseado no belo livro de Ian McEwell, que no Brasil chamou Amor Para Sempre. Não vi o filme, só li o livro; trabalhar sobre uma obra de Ian McEwell é uma grande honraria para qualquer roteirista.

O diretor John Hillcoat tem uma filmografia curta. Nascido em 1961 na Austrália, dirigiu cinco filmes – não vi nenhum dos outros quatro, mas só por este aqui dá para ver que ele tem talento. Fez ainda um clipe com Nick Cave, e o compositor e cantor australiano colaborou com ele na trilha sonora de alguns de seus filmes, inclusive neste A Estrada.

O filme se baseia num livro de Cormac McCarthy, um sucesso de público e crítica – foi best-seller nos Estados Unidos e ganhou o prestigiadíssimo Prêmio Pulitzer.

         Deve ter sido difícil chegar ao final cut

O diretor, os produtores devem ter tido um imenso trabalho para definir a forma final do filme, o final cut, a versão que sairia da sala de montagem para exibição. Há dois indícios disso. Conferi o thrailler depois de ter visto o filme, e o trailer traz diversas tomadas que não estão na versão final do filme. Além disso, o texto de abertura, falado pelo narrador, que consta no iMDB não é exatamente o texto que está no filme. Há pequenas diferenças. Muito provavelmente, o grande site pegou o texto do roteiro, que deve ter sido modificado na pós-produção, na mesa de montagem.

         “Uma história sinistra, mas otimista, esperançosa”

Vejo no AllMovie que a crítica – assinada por Jason Buchanan, um dos resenhistas mais ativos do grande site – define o filme como otimista e esperançoso, mesmo sendo “sem dúvida um dos mais sinistras, em estilo de pesadelo, histórias de sobrevivência já filmada”.

Diz ele que a chave do sucesso do filme está no uso do contraste – “não o contraste entre como era o mundo e como ele ficou agora, mas o constraste entre aqueles que instintivamente iriam matar e consumir um outro ser humano em nome da sobrevivência, e aqueles que se recusam a trair os valores que carregam de outros tempos”.

Mais adiante, Buchanan faz uma interessante comparação com os filmes da série Mad Max, por coincidência produções australianas, que lançaram o também australiano Mel Gibson ao superestrelato. “O filme é a antítese do estilo dos filmes pós-apocalipse de ação e aventura como Mad Max que começaram a invadir as telas no início dos anos 80. Naqueles filmes, o apocalipse era simplesmente um pano de fundo para uma série de seqüências de ação; em The Road, é a realidade opressiva que está constantemente nos nossos pensamentos, ditando cada movimento desesperado, à medida em que qualquer esperança por um final feliz vai embora com cinzas e entulho. Nesse mundo, a morte é um luxo, e o maior ato de amor que um pai pode cometer é matar seu próprio filho antes que os canibais cheguem.”

De fato é uma interessante forma de ver o filme, esta, de considerá-lo até mesmo otimista e esperançoso. Não tinha percebido antes que o filme pode ser visto dessa maneira. A realidade que o filme mostra – realçada pelo belo trabalho de fotografia e direção de arte – me pareceu tão absolutamente apavorante, tão cruel, que não consegui ver que ele de fato abre uma pequena fresta de luz.

Verdade: dentro de todo o pavor, há uma pequena centelha de esperança. Como em Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, que Truffaut transformou naquele belíssimo filme – o velhinho que está para morrer termina de transmitir ao netinho a íntegra do texto de um clássico da literatura. A arte vence, no final.

É isso mesmo. Dá para entender que a moral da história é mesmo esta: apesar de tudo, ainda pode haver alguma pequena centelha de esperança.

         Outro filme igualzinho, pouquíssimo tempo depois!

 Alguns dias depois de ver este A Estrada, produção de 2009, peguei na locadora O Livro de Eli, produção de 2010, sem saber absolutamente nada sobre o filme, a não ser o fato de que é com Denzel Washington. Os dois filmes são parecidos demais – é um absurdo! Exatamente como em A Estrada, estamos em um mundo pós-fim do mundo, pós-apocalipse; um homem solitário caminha por estradas em ruínas, enfrentando grupos armados. Parei de ver O Livro de Eli quando o filme estava com menos de dez minutos. Tá doido: é muito pós-fim do mundo em um espaço de tempo tão pequeno.

A Estrada/The Road

De John Hillcoat, EUA, 2009

Com Viggo Mortensen (o homem), Kodi Smit-McPhee (o garoto), Robert Duvall (o velho), Charlize Theron (a mulher), Guy Pearce (o veteran), Molly Parker (a mulher do veterano)

Roteiro Joe Penhall

Baseado no livro de Cormac McCarthy

Fotografia Javier Aguirresarobe

Música Nick Cave e Warren Ellis

Montagem Jon Gregory

Direção de arte Gershon Ginsburg

Produção Dimension Films, Chockstone Pictures, 2929 Films. DVD Paris Filmes. Estreou em São Paulo 23/4/2010

Cor, 110 min

***

8 Comentários para “A Estrada / The Road”

  1. Vi o filme uma vez há já algum tempo e depois disso comprei uma TV nova e melhor e trouxe de novo o DVD, mas não aguentei até ao fim.
    O fime está muito bem realizado e as interpretações são excelente bem como a fotografia, mas é mesmo muito sinistro.
    Aterrador mesmo.

  2. É um sacrilégio você dizer que “Comparado com esse filme, 1984, de George Orwell, é suave, quase otimista.” Ao que parece, você não leu muito bem a obra orwelliana. E tomara que não cheguemos perto de nem uma dessas duas obras, e nem de Admirável Mundo Novo ou A Revolta de Atlas.

  3. Texto original – tradução:

    “Os relógios pararam à 1 e 17…
    Houve um longo e forte clarão, e depois uma série de abalos menores.
    Acho que é outubro…
    Mas não tenho certeza.
    Não tenho um calendário há anos.
    Cada dia é mais cinzento do que o dia anterior.
    Faz frio e fica mais frio à medida que o mundo lentamente vai morrendo

    Nenhum animal sobreviveu e todas as plantações desapareceram há muito tempo.
    Logo todas as árvores do mundo vão cair.

    As estradas estão lotadas de refugiados empurrando carretas e gangues carregando armas à procura de combustível e alimento.

    Em um ano, houve incêndios nas montanhas e um canto insano…

    Houve canibalismo. O Canibalismo é o grande medo.
    Eu me preocupo principalmente com a comida. Sempre a comida.
    A Comida, o frio e nossos sapatos.

    Às vezes conto ao garoto velhas histórias sobre coragem e justiça, ainda que sejam difíceis de lembrar.
    Só sei que ele justifica a minha existência e se ele não é a palavra de Deus, então Deus nunca falou.”

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