Um Crime Americano / An American Crime


Nota: ★★★★

Anotação em 2009: Não consigo me lembrar de outro filme mais apavorante, aterrorizante, chocante do que este aqui. Acho que pode haver outros tão brutais quanto ele, mas não há nenhum mais brutal. Nem O Iluminado, de Kubrick, nem O Inquilino, de Polanski.

É uma paulada na cara, um chute no fígado, um choque elétrico – qualquer imagem desse nível serve para descrevê-lo. Em parte pela história em si, e a forma crua como ela é contada. E em parte porque – embora seja inacreditável – tudo se baseia em acontecimentos reais.

Ele nos informa isso de cara: “O que vem a seguir é uma interpretação dos acontecimentos com base no processo ‘Baniszewski versus O Estado de Indiana’, 1966. Todos os testemunhos vêm das transcrições do julgamento”.   

Nunca tinha ouvido falar do processo Baniszewski. Sim, ele é conhecido; a imprensa americana o noticiou fartamente; a Wikipedia traz a história; em 1989, Jack Ketchum publicou um romance chamado The Girl Next Door, baseado no caso – e o livro foi filmado em 2007, com esse mesmo nome. Exatamente no mesmo ano foi lançado este filme aqui – ele estreou no Festival de Sundance, em janeiro de 2007.

Me peguei pensando: cacilda, mas essa história é muitíssimo mais impressionante do que o assassinato da família na fazenda do Kansas em 1959, que Truman Capote dissecou com brilho e maestria em A Sangue Frio. Como é possível que eu nunca tivesse ouvido falar dela? Como é possível que ela não tenha sido ainda mais divulgada do que na verdade foi? Como é possível que este filme não tenha tido uma repercussão muito maior?

         ***

O diretor Tommy O’Haver nasceu em Indianapolis, exatamente a cidade onde tudo aconteceu, em 1968, dois anos depois do processo. Na juventude, leu matérias publicadas no The Indianapolis Star sobre o caso.

Seu primeiro longa metragem é de 1998, Billy Hollywood’s Screen Kiss, uma comedinha. Depois vieram Get Over It, com Kirsten Dunst, de 2001, e Encantada/Ella Enchanted, com Anne Hathaway, em 2004, uma historinha meio conto de fadas. Um Crime Americano, seu quarto filme, é o primeiro “sério”. Não poderia haver nada mais sério. 

Ele e uma antiga colega de classe, Irene Turner, leram tudo o que encontraram sobre o caso Baniszewski versus O Estado de Indiana; obtiveram cópia de todas as transcrições dos testemunhos do julgamento – e aí escreveram juntos o roteiro, que, como está dito no letreiro bem no início, transcreve frases textuais do julgamento acontecido em Indianapolis, Indiana, em 1966. Ao longo do filme, há cenas do julgamento – curtas, diretas, incisivas. A história do que aconteceu na casa de Gertrude Baniszewski, no número 3850 da Rua East New York, eles criaram com base no que foi dito no julgamento e no que a imprensa publicou sobre o caso. É o que eles chamaram de “interpretação”. A “interpretação” ocupa a imensa maior parte do filme; as cenas de julgamento vão sendo apresentadas ao longo dessa narrativa. A justaposição da “interpretação” da história feita pelos roteiristas com as palavras pronunciadas no julgamento é um brilho.

Não vou revelar nada que acontece depois dos primeiros minutos do filme – não teria sentido, só serviria para atrapalhar quem por acaso passar por este texto e ainda não tiver visto o filme.

anamericanOs pais das garotas Sylvia (Ellen Page), de 16 anos, e Jenny (Hayley McFarland) trabalham em parques de diversão, e estão constantemente mudando de cidade para cidade, para onde vão sendo levados os brinquedos do parque. Em Indianapolis, na segunda metade de 1965, ficam conhecendo uma mulher, Gertrude Baniszewski (Catherine Keener, com Ellen Page na foto), que tem sete filhos, de várias idades, alguns deles colegas de escola de Sylvia e Jenny; Gertrude tinha sido abandonada pelo pai das crianças mais velhas, sobrevive lavando e passando roupa; por US$ 20 semanais, se oferece para cuidar das duas garotas enquanto os pais seguem o circuito do parque de diversões.

São todos cristãos, freqüentam a igreja batista do bairro. São pobres, mas não miseráveis. 

Na casa de Gertrude Baniszewski, Sylvia será vítima de crueldades de fazer corar de vergonha e indignação um torturador do Santo Ofício, de Abu Graieb, do Dops da ditadura militar, de qualquer tempo ou lugar.

 É chocante, é um absurdo: como é possível que seres humanos sejam capazes de tamanha crueldade?

***   

Catherine Keener, indicada para o Oscar de coadjuvante por sua interpretação da escritora Harper Lee, a grande amiga de Truman Capote, no filme Capote, disse ao diretor O’Haver, segundo ele contou ao New York Times em janeiro de 2007: “Estou com medo de fazer algo assim”. E ele disse: “Estou com medo também. Talvez seja por isso que tenhamos que fazer”.

A própria Catherine contou ao New York Times: “Como eu sou mãe, disse para mim mesma: ‘Não posso fazer isso’. Mais tarde, pensei: ‘Eu sou mãe. Eu deveria fazer’.” 

A jovem Ellen Page, então com 19 anos e antes de Juno, que havia feito, aos 17, com um talento absolutamente extraordinário, o papel principal em Menina.má.com/Hard Candy – como uma garotinha que tortura um pedófilo -, disse ao Times que, depois de ler o roteiro pela primeira vez, ficou impressionadíssima, e não conseguia acreditar que aquela história fosse verdadeira. “Eu me lembro que fui para o computador e fiquei literalmente acordada a noite inteira lendo tudo que encontrei”.

Todo o elenco – inclusive e principalmente todas os atores mirins que interpretam as muitas crianças da história – está excepcional. Ari Graynor, que faz Paula, a filha mais velha dos muitos Baniszewski, está muito bem. Esse diretor Tommy O’Haver demonstra um talento de direção de atores que é de babar. Mas as duas protagonistas, Catherine Keener e Ellen Page, conseguem se sobressair mesmo em meio a tanta interpretação boa. É de doer. É um filme impossível de se esquecer. 

Um Crime Americano/An American Crime

De Tommy O’Haver, EUA, 2007.

Com Catherine Keener, Ellen Page, Ari Graynor, Hayley McFarland, James Franco

Roteiro Tommy O’Haver e Irene Turner

Música Alan Lazar

Produção First Look Studios. Estreou em São Paulo 22/8/2008

Cor, 97 min.

****

6 Comentários para “Um Crime Americano / An American Crime”

  1. Não sei nem o que dizer desse filme, só sei que me incomodou muito. É daquele tipo que fica na cabeça ou nas sensações mesmo no dia seguinte.

    Se você não viu o filme, não leia a partir de agora

    Meu estômago ficava embrulhado, e o que mais indigna, além da crueldade, claro, é a participação dos filhos e dos amigos. Eram apenas crianças e adolescentes, e todos cheios de maldade e torpeza (a cena em que o guri vai dar comida pro cachorro, mas fica enrolando e coloca o prato meio longe , já mostra muito bem isso). O que tb me revoltou foi a omissão dos vizinhos. Por mim, eles tb deveriam ser julgados (claro que não existe lei pra isso, mas é o que eu acho; mal comparando , é como certas ‘mães’ que sabem que o pai/padrasto abusa das filhas e não fazem na-da! pra mim, são igualmente criminosas). A irmã dela foi outra omissa. E os pais , como vão deixando as filhas assim com uma pessoa que nem conhecem?(segundo o pai, numa cena, ele diz que eles brigavam por causa delas!). Enfim, todos culpados, a única vítima mesmo foi a pobre da Sylvia.
    Tivemos um pequena amostra disso naquele caso da menina de Goiânia; a diferença é que ela não chegou a morrer e a algoz era uma pessoa rica e estudada.

  2. ESTE COMENTÁRIO CONTÉM SPOILERS
    Achei o filme fraco. Algumas contradições me chamaram atenção como uma das criminosas a, Paula que no filme teria passado a reprovar as atitudes de sua mãe e até ajudado Sílvia em uma suposta tentativa de fuga, coloca o nome de sua mãe na sua bebê, em homenagem a mãe-monstro. Outra pérola, foi a tentativa desesperada dos filhos em reanimar Silvia, eles passaram meses “matando-a” e derrepente diante da morte, aflora bondade em seus corações. Mas o pior do filme foi reservado aos últimos minutos, em que a propria Silvia fala: “Ela me sacrificou para defender seus filhos, ela sacrificou seus filhos para se defender…” Acho que o autor deveria ter tratado com mais seriedade o caso.

  3. Tudo é muito assustador nesse filme. É impressionante o que o ser humano, que se acha o único animal dotado de inteligência, é capaz de fazer com seu semelhante. E mais, a troco de NADA. Também me pareceu assustador que, depois do ocorrido, como contam os comentários finais, que os pais das meninas ainda tivessem a capacidade de também entregar a outra filha aos cuidados de terceiro!!!!!!!! Mundo maluco! Mas o filme vale pelas interpretações e, ainda, por incrível que pareça, é possível tirar algumas lições dele. Vale ver!
    obrigada, Sérgio, por mais esse.
    Abraço

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