Segredos Íntimos / Ha-Sodot


Nota: ★★★☆

Anotação em 2009: Antes de mais nada, Segredos Íntimos, do israelense Avi Nesher, de 2007, é um belo filme. Bem feito, bem realizado, bem interpretado, com uma narrativa tranqüila e madura, que prende o espectador. É também um filme denso, complexo, às vezes de difícil compreensão para nós, os não judeus. 

Apesar disso, ou talvez por isso mesmo, é um filme fascinante.

O tema é a mulher na comunidade judia ortodoxa em Israel hoje, a mulher numa sociedade absolutamente machista e absolutamente apegada a preceitos religiosos criados com base em escrituras de bem mais de dois mil anos; como fazer coexistir esses preceitos e a convivência num mundo em que o papel da mulher passou por gigantesca, gloriosa revolução; como ser fiel a esses preceitos na adolescência, na entrada da maturidade, no despertar da sexualidade.

Ou seja: um tema absolutamente importante, polêmico, difícil – e fascinante.

A protagonista da história é Naomi, interpretada por Ania Bukstein (à direita na foto abaixo), uma jovem, bela e talentosa atriz nascida em Moscou em 1982, atuante no cinema israelense desde 2003. Naomi é filha do rabino Hess (Sefi Rivlin), uma personalidade proeminente, respeitadíssima na comunidade ortodoxa israelense. A irmã mais velha de Naomi, Rachel (Alma Zack), é tudo o muito pouco que aquela sociedade espera de uma mulher – uma mãe de família e dona de casa, que cuida dos filhos e da casa e provê a comida de todos. Naomi, no entanto, é bem diferente. Aos 18, 20 anos (o filme não explicita a idade), inteligentíssima, extremamente aplicada, estudiosa, capaz de encantar e surpreender o pai com seus conhecimentos sobre as escrituras, ela quer mais que o papel tradicional de cozinheira-lavadeira-arrumadeira-parideira que – como ela irá exprimir lá pela segunda metade da narrativa – levou sua mãe à depressão.

         Um noivo machista, careta, babaca

Quando a ação começa, a mãe de Naomi está sendo enterrada. Na recepção aos amigos e familiares, na casa confortável do rabino e sua família, o espectador já fica conhecendo o noivo de Naomi – e, em poucos minutos, desenha-se todo o quadro, percebe-se quem é o tipo. É um dos alunos do rabino Hess, que, obviamente, foi quem o escolheu para genro; é um tipinho desprezível, pretensioso, machista como mandam mais de 20 séculos de sua cultura. Um pusteminha metido a besta, que enxerga a noiva como ser inferior, nada mais que isso.

Para adiar o casamento marcado para breve, Naomi conversa com o pai, explica que gostaria de estudar mais sobre as escrituras, a religião, antes de se dedicar ao papel reservado a ela de esposa e mãe. Embora isso não seja o normal, o pai aceita o pedido – afinal, ele sabe da inteligência e da dedicação da filha aos estudos.

E Naomi parte então para um seminário para mulheres, o Seminário da Sabedoria e da Verdade, na milenar cidade de Safed, no alto de uma montanha. Terá três colegas de quarto, no seminário. Uma é uma mocinha ingênua, simples, comilona, feiosa, com tendência a engordar, cujo objetivo na vida é ter um marido. Outra é uma garota que até então não tinha tido uma educação religiosa mais profunda. Essas duas serão meras coadjuvantes – embora a segunda vá ter mais tarde uma função importante na trama. A terceira é que terá papel preponderante na história e na vida de Naomi: Michelle (interpretada por Michal Shtamler, jovem bela atriz, de presença forte, à esquerda na foto acima), criada na França, é uma rebelde, aberta a aventuras, ao desconhecido, uma personalidade inquieta, que os pais pretendem domar com aquela temporada no seminário.

         Duas jovens díspares, unidas pelo destino

Naomi e Michelle vão a princípio se estranhar muito. Quando Naomi cita uma frase da Bíblia aplicável a qualquer nova situação, o que indica seu admirável conhecimento dos textos sagrados, Michelle retrucará com um comentário seco, grosseiro, tipo: “Não sabe pensar por si, tem uma frase feita para cada situação?”

As duas jovens de comportamento tão distinto serão unidas pela diretora do seminário na missão didaticamente humanitária de levar alimentos para uma certa Anouk, uma mulher francesa gravemente doente que está vivendo ali em Safed. Anouk é interpretada por Fanny Ardant, essa deusa – e é estranho que ela não esteja muito bem no papel, na minha opinião. Fanny Ardant me pareceu peixe fora d’água neste filme israelense que trata especificamente de questões da comunidade judaica ortodoxa. Mas isso é um detalhe. Vamos em frente.

Na verdade, não vou em frente para adiantar outras passagens da história, da trama. Não quero estragar, entregar, fazer spoiler. Só é preciso anotar que, a partir daí – o que eu adiantei até aqui está contido na primeira meia hora do filme –, o espectador vai mergulhar em situações que, para serem bem compreendidas, exigiriam um conhecimento sobre a religão judaica que os não judeus não possuem. Vai-se falar de rituais específicos das tradições judaicas – Tikkun, cabalismos, cânticos, expiações de culpa, mergulho em águas de fonte proibida a mulheres, uso de tecidos ásperos para que o corpo pene e a alma se purifique.

         Uma discussão sobre sexualidade num meio em que isso é tabu

O que impressiona, e muito, é a ousadia do filme em ir muito fundo na discussão o papel da mulher naquela sociedade – e, especificamente, sobre a sexualidade.

Anotei um trecho de uma fala da diretora do seminário para Naomi que me pareceu extraordinária. A diretora é uma mulher madura, experiente. Como diria Leonard Cohen, esse judeu budista, ela é uma mulher que tenta mudar o Sistema pelo lado de dentro. Para mudar um Sistema de mais de dois mil anos, recomenda calma – “não adianta tentar romper um muro com uma cabeçada”, ela dirá a Naomi quase no fim da narrativa. Bem antes disso, no entanto, antes da metade do filme, ela chama Naomi para uma conversa; quer conhecer melhor aquela aluna que obviamente se destaca de todas as demais pela profundidade de seus conhecimentos e pela seriedade com que se dedica ao estudo. Depois de falar sobre a morte da mãe de Naomi, da perda, e de dar a entender que compreende que a jovem está adiando o casamento, ela diz:

– “Você foi inteligente em vir para cá. Quando eu tinha a sua idade, não havia essa opção. Sei que nosso processo de liberação é mais difícil que o das mulheres seculares. Não é fácil mudar a condição ‘inferior’ das mulheres, tão ligada à Lei Bíblica escrita há mais de 2 mil anos para garantir a dominação dos homens sobre as mulheres. Estamos no processo de uma revolução silenciosa, e não devemos falar sobre isso em voz alta. Mas talvez, se Deus quiser, ainda na nossa geração uma mulher será uma rabina de verdade.”

         Muitas indicações da academia israelense, mas nenhum prêmio

A ousadia com que este filme trata dessas questões é de fato impressionante. Não dá para saber, mas imagino que a comunidade judaica ortodoxa tenha se revoltado profundamente contra o filme, tenha considerado que ele é extremamente ofensivo às suas crenças, às suas tradições. Me lembro agora, por exemplo, de que o Vaticano se manifestou de forma virulenta contra O Código da Vinci, porque a história falava de uma possível esposa de Cristo. A mim parece que Segredos Íntimos é bem mais ousado que aquele best-seller que virou blockbuster.

Vejo no iMDB que o filme teve oito indicações para os prêmios da Academia Israelense de cinema, entre elas melhor atriz para a bela e competente Ania Bukstein e atriz coadjuvante para a igualmente bela e competente Michal Shtamler. Não houve indicação para os prêmios mais importantes de todos, os de filme e direção – e nenhuma das oito indicações foi transformada em prêmio. Isso pode ser um indício de que, de fato, não foi fácil aceitar a ousadia toda do filme.

         Um panorama do cinema israelense e a religião

Encontrei um longo e interessante comentário sobre o filme em um site chamado www.jewcy.com, do Zeek, “um jornal de pensamento e cultura judaica”, que pretende “representar, definir e criar Nova Cultura Judaica”. O texto fala do cinema israelense e sua relação com a comunidade ortodoxa; me pareceu um tanto generalizado demais, e toda generalização simplifica, empobrece, tira fora as nuances – mas eles certamente sabem do que estão falando, e este deve ser de fato o panorama, em linhas gerais:

“Durante os anos 1980, os cineastas israelenses estavam preocupados com o conflito Israel-Palestina. Nos anos 1990, exploraram a dinâmica entre os centros urbanos de Israel e a periferia do país. Esta década tem testemunhado uma onda de filmes que procuraram retratar a experiência de comunidades antes consideradas marginais pelo cinema israelense. O mais recente drama de Avi Nesher, The Secrets (Israel-França, 2007), se une a outros filmes israelenses recentes, tanto de ficção quanto documentários, que exploram a comunidade ultra-ortodoxa de Israel.

“Os judeus ultra-ortodoxos estavam ausentes da cinematografia isralense até os anos 1990. Isso não é supresa, porque o cinema israelense historicamente tem refletido a identidade do establishment israelense, promovendo o secularismo e criticando a religião como um sinal de etno-nacionalismo, mais que uma faceta cultural da vida cotidiana. A partir do final dos anos 1990, no entanto, a experiência religiosa passou a ocupar o centro do palco do cinema israelense.”

         É de se tirar o chapéu – ou o solidéu – para tanta coragem

O diretor Avi Nesher é tido como um dos mais importantes cineastas israelenses. Segredos Íntimos é seu 16º filme. É um cineasta com pleno, absoluto domínio de seu ofício. Seu filme discute temas sérios, profundos, densos, e a narrativa flui suavemente, maravilhosamente; nada ali é chato, aborrecido, cansativo. Muito ao contrário. A narrativa de fato pega, envolve o espectador.

Avi Nesher escreveu o roteiro juntamente com Hadar Galron, uma mulher nascida em Londres que o site oficial do filme (aliás, vale a visita, porque mostra belas imagens e um pouco da extraordinária trilha sonora) define como “um fenômeno único e altamente controverso dentro da cultura israelense: ela é uma ortodoxa e uma feminista corajosamente franca”.

Eu, aqui no meu cantinho, não judeu, ignorante em quase todas as áreas do conhecimento humano, mas mais ainda em assuntos de cultura judaica, me pergunto como é possível ser ao mesmo tempo ortodoxa e feminista corajosamente franca. Deve ser seguramente muito dura a tal tarefa de mudar o Sistema pelo lado de dentro.

E o fato é que o roteiro que Hadar Galron e o diretor fizeram, e o filme que Avi Nesher criou a partir dele, resultam numa experiência de fato fascinante. Para a coragem, a ousadia, é preciso tirar o chapéu – ou o solidéu.

Segredos Íntimos/Ha-Sodot

De Avi Nesher, Israel, 2007

Com Ania Bukstein (Naomi), Michal Shtamler (Michelle), Fanny Ardant (Anouk), Adir Miller (Yanki), Tiki Dayan, Sefi Rivlin (rabino Hess), Alma Zack (Rachel)

Roteiro Avi Nesher e Hadar Galron

Fotografia Michel Abramowicz

Música Daniel Salomon e Eyal Sela

Produção Artomas Communications

Cor, 120 min

***

Título em inglês: The Secrets

7 Comentários para “Segredos Íntimos / Ha-Sodot”

  1. Este filme é extraordinário! Onde estava esta atriz tão talentosa? A Ania Bukstein, é, simplesmente, tudo que se precisa num filme. Linda, inteligente e talentosa. Quanto ao filme, faz tempo que não assisto um que me fez ri e chorar e que tenha vontade de assistir várias vezes.

  2. Eu não conhecia essa atriz, Ania Buckstein,
    muito bonita e, meu Deus, que atriz, que fôrça de interpretação.Aquela “amiga”, sem ser a gordinha comilona, eu julguei como sendo “o Judas da época,do momento”. De fato,todo aquele machismo,o pai é quem escolhe o noivo prá sua filha e aquele noivo
    da Naomi, como dizes, Sergio,um machista careta,desprezível,pretencioso e verdadeiro babaca.
    Gostei muito mesmo deste filme,ótimas interpretações dos protagonistas mas para falar algo mais fundo sôbre ele,me apego no que disseste logo no começo do teu texto, Sergio,é um filme complexo de difícil compreensão para os não judeus. Não que eu não tenha entendido o filme e, sim,aquelas situações sôbre a religião judáica.
    Sei lá, mas,não gostei do final. Acho que não se digere tão rápido, um rompimento que foi doloroso (como todos são)e,que se participe ativamente da festa. Perdoar, tudo bem, assim Deus nos ensinou,ainda que dôa.
    Custei a encontrar e não encontrei mesmo este filme nas locadoras por aqui, ainda que seja de 2007. Acabei encontrando e assisti via online.
    Ótimo filme , muito lindo e bem feito.
    Abraço, Sergio !!

  3. Sua crítica é excelente. Confesso que assisti este filme sem grandes expectativas, e agora reconheço que se trata de uma obra-prima. Sobre a dificuldade de entender os rituais judaicos, vejo isto como mais um dos muitos méritos desse filme. Nada mais irritante do que a mania hollywoodiana de explicar tudo para o expectador. Mesmo que o entendimento dos não-judeus acerca da religião não seja completo, isso não prejudica o filme de maneira geral. Pelo contrário, desperta ainda mais nossa curiosidade. As atuações são impressionantes e a fotografia, primorosa. Um dos melhores filmes dos últimos tempos.

  4. Olá ! Boa tarde ! Ganhei este filme, de um colega, há 3 anos atrás e no fim de semana o assisti…Creio que há sempre o momento certo. Foi mágico, comovente e transformador. Amei o filme ! Por favor, onde posso encontrar as músicas deste filme. Em especial a do penúltimo ritual, onde ela é julgada pela Sigue e a outra trilha sonora é quando Naomi está seguindo para o casamento. Grata

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