Ódio / Hate, de Lei e Ordem: Special Victims Unit, 5º Ano


Nota: ★★★☆

Anotação em 2009: São poucos, não é coisa de todo dia, mas alguns episódios de séries de TV mereceriam ser filmes inteiros. Têm existência própria, e a qualidade de bons longas-metragens. É o caso desse Ódio, episódio do quinto ano (2003-2004) do Lei e Ordem: Special Victims Unit.

O episódio me impressionou bastante, quando vi com Mary algumas semanas atrás. O tema é racismo, e a forma com que o episódio trata o tema é brilhante, excepcional. Na semana passada, tive a idéia de criar uma nova tag neste site, reunindo os filmes sobre racismo e imigração (os dois temas são umbilicalmente ligados, e não caberia fazer duas tags, porque a maior parte dos filmes se repetiria nas duas), e então quis rever o episódio.

Numa de suas frases mais inspiradas, Nelsinho Motta disse “que dor de amor quando não passa é porque o amor valeu”; mutatis tudo que precisa ser mutandi, acho que episódio de série de TV – essa coisa feita sem o mesmo cuidado que o cinema, muito mais rápido, mais para se ver e depois esquecer –, quando resiste bem a uma revisão, é porque valeu. E Ódio passa bem pelo teste da revisão.

Talvez seja porque ele diz exatamente o que eu acho a respeito do tema. Pode ser. Isso existe, é claro.

Mas vamos lá. O episódio começa – como a grande maior parte dos episódios da série – com personagens que não terão importância no desenrolar da história, mas que são as pessoas que encontram a cena do crime. Quase sempre é assim. Neste aqui, é um casal que anda numa rua de Manhattan à noite – e aí veio um diferencial interessante, porque o diálogo, que, sabemos, não terá nada a ver com a história em si que veremos a seguir, é bem interessante; ele já coloca a posição do roteirista e do diretor diante do mundo.

É um jovem casal de namorados, ou noivos; estão discutindo o futuro, o que farão na vida profissional, depois de concluídos os estudos. O sujeito é uma espécie de yuppie, pelo que ele diz; a moça é uma believer. Ela quer ser médica, clinicar; ele diz que isso não dá dinheiro.

Ela: – “Por que temos que ficar ricos? Quero uma vida que signifique alguma coisa.”

Ele: – “E quem diz que ganhar um monte de dinheiro não tem significado?”

Ela: – “Eu te amo, mas seus valores são uma merda.”

E aí ela vê uma coisa que a deixa assustada, apavorada (o ritmo do Lei e Ordem: SVU é pior que o dos vídeoclips, é tudo rápido demais; confesso que só consigo ver o SVU graças à tecla de rewind): uma mulher está pegando fogo. O rapaz que prega o amor pelo dinheiro tira o casaco caro e corre para tentar apagar as chamas da roupa da mulher, enquanto a garota que prega uma atividade que faça diferença na vida diz para ele ter cuidado.

Só essa abertura já mostra muito talento, tanto do roteirista quanto do diretor: a ação que destoa do discurso, contraria o discurso. Me lembrei das aulas da Ivana, minha professora de Literatura no Colégio de Aplicação, falando sobre uma passagem de Os Maias, de Eça de Queiroz, em que os dois protagonistas estão se queixando da vida, dizendo que a vida não presta, não vale para nada, e de repente passa o bonde, e eles se esquecem da filosofia e saem correndo para pegar o bonde.

Tergiversei. Peço desculpas, e tento ir direto ao assunto.

         Assassinatos com crueldade extrema      

A vítima é uma jovem árabe de 27 anos. Antes de botar fogo nas roupas dela, usando um produto químico, o assassino enfiou um cano de ferro na vagina da mulher.

Pouco tempo depois, um homem, também um árabe, é assassinado da mesma maneira absolutamente bárbara: um cano de ferro no ânus, e fogo na roupa.

alei1Na metade do episódio, um suspeito é preso – um sujeito entre uns 25 e 30 anos, Sean, descendente, como indica o nome, de irlandeses, mas que se julga um americano quatrocentão, ou multimilenar. Os detetives Benson & Stabler (Mariska Hargitay e Christopher Meloni, na foto) ficam horas interrogando o suspeito, que demonstra ter prazer em se fazer ouvido, mas não confessa os crimes. Temos este diálogo:

Sean: – “Sou um americano de verdade. Eu nasci aqui. As coisas eram diferentes quando eu era mais jovem. Não havia essas pessoas (ele se refere aos árabes, quaisquer que foram eles, sejam terroristas, extremistas ou não, apegados à religião ou não, xiitas ou sunitas, ou o que for).

Olivia Benson, puta dentro das calças, e com toda a razão do mundo: – “Sempre houve estrangeiros. Todos somos estrangeiros. Este país foi feito por imigrantes.”

Sean: – “Agora eles (os árabes de todos os matizes, para ele todos terroristas) alugam casas em New Jersey, montam células terroristas e destroem prédios. (Vira-se para Elliot Stabler:) O que você acha?”

Aí Elliot puxa o cinto da calça para cima, e diz:

– “Eu vou te dizer. Vejo essas pessoas andando na rua e tenho que admitir: não gosto que elas estejam aqui.”

(Olívia faz uma cara espanto, mas seu parceiro sinaliza para ela se afastar um pouco do interrogado. Fica claro para o espectador que Elliot vai incitar o racismo do suspeito.)

Sean: – “É?”

Stabler: – “É.”

Sean: – “Stabler? É um nome irlandês? Eu estudei na Holy Name. E você?”

Stabler: – “Sisters of Mercy.”

Feliz por estar falando com um sujeito que julga ser igual a ele, Sean vai se soltando: – “Não fiz faculdade porque os árabes ocupam as vagas. Eles chegam com o dinheiro do petróleo e compram as vagas. Com o dinheiro que nós pagamos para eles.”

Stabler: – “Tem razão. Não é justo.”

Sean: – “Então você entende?”

Stabler: – “Um dos meus melhores amigos morreu no World Trade Center. O que você acha?”

Sean se vira para Olivia (ela tem a pele um pouco morena): – “Tá vendo? Você não entende. Ele entende.”

O interrogatório já dura quatro horas e meia. O detetive Fin Tutuola (interpretado pelo ótimo Ice-T, que ficou famoso como cantor de hip-hop, e tem a pele negra; foto abaixo), pergunta para o Capitão Cragen (Dan Florek), que assiste ao interrogatório através da janela com aquele vidro que só permite a visão de quem está do lado de fora, se pode entrar e participar. Cragen dá a autorização, e Tutuola entra na sala de interrogatório.

aleifinA reação de Sean é imediata: – “O que ele está fazendo aqui? Você o chamou? (Vira-se para Olivia.) Você não gosta de mim, não é? (De novo para Stabler.) O que você vê nela? Quer saber? Acho que ela não tem sangue puro. O que é? Árabe? Muçulmana? (Agora para Tutuola.) E você? Também tem sangue muçulmano?”

Tutuola: – “Os africanos se miscigeneram durante milhares de anos. Eu posso ter uma parte árabe.”

Sean: “Isso explica por que os pretos se uniram ao inimigo. Muçulmanos negros. Traíram o povo americano.”

Tutuola responde ríspido, a discussão fica acalorada, e Sean admite os crimes bárbaros.

Corte rápido, e Olivia e Tutuola estão andando pela delegacia. Olivia diz: – “Você se abala menos do que eu.”

E aí o ator Ice-T, com aquela voz fantástica dele, gutural, com um jeitão de quem foi criado nas ruas pobres, fala uma belíssima frase:

– “Daqui a uns séculos, as raças estarão tão misturadas que isso não vai ter a menor importância. Ninguém saberá a cor de ninguém.”

Tomara que não demore tanto, alguns séculos – tomara que isso seja bem mais rápido.

Aliás, o Brasil sempre foi um exemplo disso, de país miscigenado e que, ao contrário dos Estados Unidos e da África do Sul, nunca teve leis separando as pessoas pela cor de sua pele – até agora. No governo Lula, infelizmente, tem ganhado força a corrente racialista, que pretende fazer o país retroceder nesse campo em que ele era exemplo de avanço.

Essa seqüência do interrogatório acontece quando estamos na metade do episódio. Ainda haverá vários desdobramentos a partir daí, e por isso achei que não faria mal relatar o diálogo – que, a meu ver, resume, com brilhantismo, como funciona a cabeça doentia do racista, do supremacista.

         Um seriado progressista

Tenho lido restrições, críticas a Lei e Ordem: Special Victims Unit, de gente que diz que o seriado defende idéias conservadoras, para agradar ao gosto do americano médio. Não concordo, de maneira algum. Ao contrário: acho, ao contrário, que o seriado defende posturas progressistas, avançadas, ao discutir temas sérios, pesados, como racismo, as falhas da legislação e da Justiça, o privilégio dos réus que têm como pagar ótimos advogados, direitos individuais, genética, ciência, e outros.

Acho que, de fato, os episódios das duas primeiras temporadas eram mais ricos do que os seguintes (só vimos até a quinta) porque exploravam mais o lado humano dos detetives da unidade, os conflitos familiares deles. Isso tem ficado cada vez mais ausente – muito provavelmente em função de pesquisas de audiência, sim –, o que é uma pena. Mas a postura não é conservadora – muito ao contrário. Como, aliás, este episódio que comentei deixa bastante claro.

Ódio/Hate, de Lei e Ordem: Special Victims Unit, 5º Ano

De David Platt, EUA, 2003-2004

Com Christopher Meloni, Mariska Hargitay, Ice-T, Richard Belzer, Dann Florek, B.D.Wong, Diane Neal, Reynaldo Rosales

Roteiro Robert Nathan

Série criada por Dick Wolf

Produção Wolf Films

***

6 Comentários para “Ódio / Hate, de Lei e Ordem: Special Victims Unit, 5º Ano”

  1. Esta é uma boa série, pra quem gosta do tema, mas eu acho que eles sempre davam um jeito de punir o culpado, quando esse não era “pego” pelas leis ( e olha que as leis nos EUA são ralmente cumpridas), o que tornava tudo meio chato no final. Mas o desenrolar dos episódios eram sempre bem feitos. Gostava especialmente do personagem do Richard Belzer. Ele e o Ice- T formavam uma dupla muito legal. Ótima sua observação de que o discurso do casal destoava da ação. Eu não gostei da justificativa que eles deram para o fato do assassino ser racista… se é que racismo tem explicação. Pelo caminhar da humanidade, ainda vai levar mesmo alguns séculos , infelizmente, para que “as raças* se misturem”. Mas quem sabe quando isso acontecer – como já cantou o rei do pop nacional – “toda a raça então experimentará, para todo o mal, a cura”.

    * Hoje me parece que não é correto falar raça, pois segundo os entendidos ou os politicamente corretos (a.k.a. chatos de plantão), só existe uma raça, a humana. O que existem são as etnias ou whatever.

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