O Advogado do Terrror / L’Avocat de la Terreur


Nota: ★★★½

Anotação em 2009: Este documentário francês do veterano diretor de origem alemã e suíça Barbet Schroeder (nascido no Irã e com passagem marcante por Hollywood) merece diversos adjetivos. Assombroso. Espantoso. Chocante. Extraordinário. 

É também difícil, extremamente complexo. Requer do espectador um conhecimento de História Contemporânea que, é forçoso admitir, não é todo mundo que tem. Antes pelo contrário.

Jacques Vergès, a figura central do filme, o advogado do terror do título, é uma daquelas figuras que desafiam a lógica. Parece mais uma invenção – como costumo às vezes dizer – de um roteirista ensandecido depois de toneladas de muito ácido. Nem um John Le Carré, nem um Frederick Forsyth, acredito, seria capaz de criar uma personalidade tão louca, tão misteriosa, tão diabolicamente inteligente, tão capaz de participar dos mais intrincados meandros da política de diversos continentes – e tão absolutamente abominável.

Uma frase do New York Times, usada como arma de marketing pelos distribuidores do filme, acerta em cheio: “Assombroso e frio demais para ser verdade”.

E no entanto é.

Comunista de carteirinha na juventude, defensor dos direitos dos palestinos, Jacques Vergès ligou-se em seguida a nazistas, neonazistas, terroristas e ditadores sanguinolentos e genocidas dos mais diferentes matizes e nacionalidades. Fez uma ponte direta entre extrema esquerda e extrema direita. 

Jacques quem mesmo?

Pois é. Jacques Vergès. Talvez devesse ter, mas não tenho vergonha de admitir que, depois de 38 anos de jornalismo e muita leitura, jamais tinha ouvido falar no nome desse senhor, até que meu irmão Floriano, uma espécie de Britannica ambulante, me falou dele e deste documentário aqui, exibido no Brasil a partir de julho de 2008 e já lançado em DVD, pela Imagem Filmes.  

Jacques Vergès nasceu em 1925, na Tailândia, filho de um diplomata francês e uma vietnamita, e foi criado na ilha de Réunion, uma colônia francesa no Oceano Índico, a Leste de Madagascar. Alistou-se para lutar nas forças lideradas por De Gaulle e armadas na Inglaterra para combater o nazismo; num dos vários longos depoimentos que deu e que estão neste filme, diz, irônico, safado, como se contando vantagem, que o único ferimento de guerra que teve foi um corte na mão, provocado por uma faca que usava para fatiar um alimento.

(O filme mostra, em diversos momentos, que Vergès é um bon vivant, um amante da boa culinária, dos bons charutos, dos prazeres então e ainda agora ditos burgueses, decadentes e etc.)  

Depois de estudar Direito na França, tornou-se conhecido na segunda metade dos anos 50 ao defender, em um tribunal francês na Argélia colonial, a jovem e bela Djamila Bouhired e outros acusados de terrorismo. Nesse julgamento, usou pela primeira vez a tática que seria sua marca registrada – a de negar a validade do tribunal; segundo sua linha de defesa, os argelinos que combatiam os franceses colonialistas tinham o mesmo mérito e os mesmos direitos que os franceses que tinham combatido o domínio nazista durante a Segunda Guerra.

Djamila e quatro outros réus foram condenados à morte. Vergès iniciou uma campanha pública em favor deles – enquanto prosseguia a guerra dos argelinos contra os franceses, que só terminaria com a independência do país em 1962. Houve passeatas e demonstrações em diversos locais da Europa a favor dos condenados. O filme recupera imagens de várias dessas demonstrações e de jornais que as noticiavam; foi uma movimentação internacional que faz lembrar as marchas promovidas décadas antes em defesa de Sacco e Vanzetti, condenados à morte nos Estados Unidos em meio a uma paranóia xenófoba e contra anarquistas, socialistas e tudo que se parecesse com isso. Ao contrário do que aconteceu com os imigrantes italianos, que aliás jamais pegaram em armas, a campanha em defesa dos terroristas argelinos foi vitoriosa; todos foram indultados, e Vergès acabaria se casando com Djamila Bouhired.

A partir da década de 60, ele se engajou na defesa dos terroristas palestinos que exigiam o reconhecimento de um estado para seu povo.

 Até aí, há lógica, razão, coerência. E o documentário abre espaço, e muito espaço, para Vergès apresentar a sua versão das idéias e dos fatos – assim como ouve também dezenas de outras pessoas que o conheceram ou estudaram casos em que o advogado se meteu. Ele diz para a câmara que é visceralmente anticolonialista, que defende os direitos inalienáveis dos povos oprimidos por sua liberdade.

Até aí, repito, há coerência. A partir daí, as coisas ficam terrivelmente confusas, embaçadas, embaraçadas. Porque o filme vai revelando insuspeitadas (pelo menos para mim; nunca soube disso antes) ligações entre nazistas e neonazistas com os movimentos terroristas palestinos; nazistas financiaram – mostra o filme – organizações terroristas palestinas, certamente dentro daquela lógica de que inimigo do meu inimigo é meu amigo, o inimigo sendo, é claro, Israel, os judeus. 

De 1970 a 1978, Vergès sumiu de circulação; há poucas provas sobre o que de fato houve com ele nesse período – há várias versões, que o documentário apresenta. Mas o certo é que, a partir daí, entrando na década de 80 e adiante, Vergès passou a defender Carlos, o Chacal, terroristas alemães (epa, a luta do terrorismo de esquerda na democrática Alemanha não pode ser defendida como anticolonialista, certo?), terroristas árabes de diversas facções, inclusive os ligados aos aiatolás da época de Khomeini e os responsáveis por vários atentados em Paris. E defendeu também Klaus Barbie, que passou para a história como o carniceiro de Lyon, torturador de dezenas e dezenas de pessoas da resistência francesa, entre eles o ícone Jean Moulin. Esse mesmo, Klaus Barbie, que no início da década de 1970 o repórter Evaldo Dantas Ferreira, do Jornal da Tarde e de O Estado de São Paulo, descobriu vivendo escondido na Bolívia, e foi entregue em seguida à Justiça francesa. Vergès de novo saiu pela tangente da razão dizendo que os crimes atribuídos a Barbie, especialmente a tortura, eram semelhantes aos que a França cometeu contra os patriotas argelinos. Pode até ser – mas a partir daí tem-se que inocentar tudo dos dois lados?  

Em seguida, Vergès defenderia uma impressionante sucessão de sanguinários ditadores africanos – do Chade, do Gabão, do Congo. Ofereceu-se para defender o genocida sérvio Slobodan Milosevic e o ditador iraquiano Sadam Hussein; só não os defendeu porque eles não quiseram, mas foi o advogado de Tariq Aziz, ministro de Sadam. Defendeu também Khieu Samphan, braço direito do genocida cambodjano Pol Pot. No início do filme, Vergès aparece menosprezando a extensão do genocídio promovido pelo Khmer Vermelho no Cambodja.

Quase ao fim do documentário, há a frase esperta, marota, calhorda, que, aparentemente, Vergès ensaiou e repete sempre que pode. Perguntado se defenderia Hitler, diz para a câmara, com uma expressão irônica: “Eu defenderia até Bush, desde que ele admitisse sua culpa”.

Por diversos motivos, vale a pena ver este documentário impressionante, extremamente bem feito, com uma riqueza de material de arquivo de babar e uma excelente trilha sonora. O diretor Schroeder, eclético, sempre competente, autor de filmes hollywoodianos como O Reverso da Fortuna/Reversal of Fortune, de 1990, Mulher Solteira Procura/Single White Female, de 1992, e Antes e Depois/Before and After, de 1995, já havia feito um documentário sobre outra figura tragicamente emblemática dos males do século XX, General Idi Amin/Général Idi Amin Dada: Autoportrait, de 1974. 

Este O Advogado do Terror fornece interessante material para se pensar sobre Justiça, legalidade e legitimidade, sobre o significado das ideologias, sobre essa pouco falada união de extrema esquerda com extrema direita. Fornece também uma boa lição de humildade: mesmo que a gente ache que sabe alguma coisa nesta vida, a gente de fato conhece muito pouco.  

O Advogado do Terror/L’Avocat de la Terreur

De Barbet Schroeder, França, 2007

Música Jorge Arriagada

Produção La Sofica Uni Etoile 3, Wild Bunch, Centre National de la Cinématographie

Cor e P&B, 135 min

***1/2

4 Comentários para “O Advogado do Terrror / L’Avocat de la Terreur”

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