Homicídio / Homicide


Nota: ★★★½

 Anotação em 2009: Um belíssimo thriller, impressionante em tudo por tudo – até por ir muito além do gênero. Faz um belo estudo psicológico dos personagens, e discute o nada simples tema da identidade social e de grupo étnico e religioso em uma sociedade complexa – especificamente, um judeu vivendo numa grande cidade americana em meio ao caldeirão de etnias.

Feito em 1991, foi o terceiro filme escrito e dirigido por David Mamet, que até pouco antes se dedicava apenas ao teatro. Mamet é um brilho – e aqui ele demonstra que não tem medo de enfiar a mão em caixa de marimbondo. Muito ao contrário: o bicho não foge de uma polêmica. E todos sabemos que, quando se fala de judeus, judaísmo, Israel, sionismo, é polêmica na certa.  

O filme abre com uma dessas ações de FBI e Swat entrando num apartamento para caçar um bandido que a gente vê em tantos filmes e séries de TV: aquela coisa exagerada, 15, 20 homens pesadamente armados, uma bomba que derruba a porta do apartamento do cidadão, os berros de “FBI! Ninguém se move!” – aquela ostentação de força bruta que muitas vezes, como no caso específico, não dá em nada: Randolph (Ving Rhames), o bandido caçado, traficante e assassino de dois policiais, escapa do cerco numa boa.

Essa seqüência de abertura é curtíssima; corta e temos um alto oficial da Polícia dizendo a um grupo de policiais que a comunidade negra chiou horrores com a ação do FBI e da Swat, que há um clima de rebelião, o prefeito pediu ao FBI para deixar o caso, e neste momento a tarefa de encontrar o bandido Randolph está voltando à Polícia local.

É aqui, na segunda seqüência do filme, que o espectador fica conhecendo o protagonista, o detetive Bobby Gold (Joe Mantegna, trabalhando pela terceira vez em filme de Mamet, no terceiro filme que Mamet fez na vida). Bobby Gold diz ao chefão que dirige a reunião que ele e o seu parceiro, Tim (William H. Macy, idem ibidem, terceiro filme com Mamet), podem pegar Randolph; anos antes, tinham pego um cunhado de Randolph; os dois eram muito ligados, e então o detetive Gold acha que ele e o parceiro podem prender Randolph agora.

Aí surge um outro figurão, que participava do encontro mas até então estava calado; um desses tipos que chegam a cargo de chefia e se acham donos do mundo. Sua pele é negra. Quer saber por que Gold não tinha dito isso antes, não tinha cooperado na busca de Randolph. Gold tenta explicar que o FBI tirou a polícia local do caso, mas o tal figurão não quer saber, xinga, dá bronca, ameaça, é o dono da verdade – e, ao fim do diálogo, xinga Gold de judeuzinho.

Não temos dez minutos de filme, e Mamet está desmascarando e exibindo para o distinto público: a) as ostentações de força bruta do FBI; b) a inutilidade de tais ostentações de força; c) a luta surda e ferrenha entre as diversas forças pagas para dar segurança aos cidadãos; d) como há imbecis em cargos de chefia; e) como o fato de ter a pele negra não impede um sujeito que subiu no trabalho de ser preconceituoso; f) o puto sabe fazer cinema bem pra cacete. 

O detetive Bobby Gold é um bom policial, tem ótima ficha; por ter talento, saber conversar, foi colocado como negociador de reféns, e já salvou 22 vidas. Essas informações são passadas pelo seu chefe imediato ao tal figurão nervosinho, mandão e preconceituoso, mas o figurão não quer nem saber.

         Não há nada simples

Mas o fato é que o espectador então já sabe de tudo isso, quando, logo depois que os figurões deixam o distrito policial, os parceiros Bobby Gold e Tim combinam como ir atrás do bandidão Randolph. Eles acham que é uma questão de achar o tal cunhado de Randolph, e então chegar a ele; onde encontrar o cunhado, eles sabem, e é para lá que vão. É um grande caso, vai sair com destaque nos jornais e os policiais que o resolverem certamente serão promovidos. Eles sabem disso, o espectador também já foi avisado disso.

ahomicídio1Só que nas histórias de David Mamet – assim como às vezes acontece na vida real -, não há nada simples. No caminho até o lugar onde achariam o cunhado do bandido, há um policial inexperiente que pede a ajuda deles; Bobby Gold vai lá ajudá-lo, com uma pressa danada de ir embora cuidar do caso importante.

O policial inexperiente está diante de um caso de homicídio: uma velhinha acabava de ser morta em sua lojinha de esquina pobre. Coisa pouca, caso sem importância – o caso importante é o de Randolph. Mas chega ordem da central, o caso de assassinato é de Gold, ele tem que ficar lá. Gold tenta se rebelar, quer o caso grande – mas a central avisa que o caso da velhinha não é tão pequeno assim, tem figurão mexendo pauzinhos, dando telefonemas para gente importante, quer a solução do caso.

 A velhinha é judia. E de uma família muito rica e influente.

 A neta da velhinha se aproxima da cena do crime. Não aparece o prenome dela, é apenas Miss Klein. (Miss Klein é interpretada por Rebecca Pidgeon, bela atriz, bela compositora, bela cantora, senhora David Mamet na vida real.) O pai da moça, filho da vítima, diz para ela:

 – “Não pára nunca?”

 Gold ouve, pergunta para Miss Klein o que não pára nunca, e ela responde:

 – “A perseguição aos judeus.”

 A cara do detetive Bobby Gold está péssima quando ele chega ao riquíssimo apartamento da família da vítima, chamado porque havia uma suspeita de que um homem armado rondava o lugar. Numa determinada altura, o chamam para atender a um telefonema do parceiro Tim, e ele vai até um grande aposento, um escritório, uma biblioteca; Tim conta como está indo o grande caso, o do bandidão Randolph. E o detetive Bobby Gold vai falando ao telefone:

 – “Eu gostaria de estar aí, mas estou preso aqui com esses judeus. Você tinha que vem o lugar. Um bando de metidos. Só porque pagam um bando de impostos. Danem-se eles e os impostos que eles pagam. (Tim fala algo que o espectador não ouve, e Gold prossegue.) Ei, não é o meu povo, querido. Danem-se eles! É tanto anti-semitismo há mais de 4 mil anos que deve ter um motivo para isso.”

 No momento em que o detetive Gold pronuncia a frase “Danem-se eles!”, ele sai do quadro – está dando alguns pequenos passos em torno do telefone – e o espectador vê, sentada em uma poltrona do aposento, ouvindo tudo, Miss Klein, a neta da vítima. O detetive Gold só a vê no momento de desligar o telefone.

 Já escrevi não sei quantos parágrafos, já houve diversas outras ações, todas importantes, pertinentes, que nem descrevi, e passaram-se até aqui apenas uns 25 minutos de filme. Ainda tem muita, mas muita coisa para acontecer. David Mamet, um estudioso de temas relacionados ao judaísmo, autor de livros sobre o tema, vai fazer seu personagem, o detetive Bobby Gold, ter sérios questionamentos a respeito de sua identidade como “americano” e como “judeu”, e vai, ele mesmo, enfiar a mãozona bem lá no fundo da caixa de marimbondos que é falar de anti-semitismo e sionismo.  

          Se você não viu o filme, não leia a partir de agora

Não vou revelar o fim do filme – até porque há seguramente mais de uma maneira de enxergar o que, afinal, acontece depois que Bobby Gold resolve investigar a sério o assassinato da senhora judia. Mas gostaria de transcrever um trechinho de um belo texto sobre o filme que achei na internet, publicado no Washington Post em outubro de 1991, na época do lançamento do filme, por um jornalista chamado Hal Hinson. Ele consegue sintetizar a profunda transformação por que passará Bobby Gold depois de ter falado aquele monte de asneiras diante de Miss Klein. Depois de lembrar que o grupo a que Bobby pertence é dos policiais, que está acima de diferenças culturais, étnicas, de origem, ele diz:

“O ‘judeuísmo’ do próprio Bobby não significa nada para ele; está enterrado sob camadas de ser policial. Ele só pensa em si mesmo como judeu no sentido negativo. Ser judeu sempre significou que ele tinha algo a provar; sem que ele de fato soubesse, era por isso que ele sempre tinha que ser o primeiro nas ações policiais. Então, ele é forçado a reavaliar suas atitudes.”

E em seguida um judeu ortodoxo, que segue fielmente todos os preceitos da religião, mostrará um texto para Bobby, e ele dirá que não sabe ler. O outro fica surpreso: “Você diz que não é judeu e não lê hebreu. O que você é, então? (…) Você não tem vergonha? Você não pertence a lugar algum. Você é um judeu? Então seja um judeu.”

Quando Bobby finalmente faz o que os judeus estão dizendo para ele fazer, quando deixa de pensar e agir como um policial para agir como judeu, descobre muito rapidamente que foi traído pelo grupo cuja causa acabou de abraçar.

Ao final, o mínimo que David Mamet está dizendo é que um grupo de judeus entende que fazer sua própria Justiça, ser promotor, jurado e carrasco, é seu direito líquido e certo, possivelmente passado a eles diretamente por Deus. E isso é o mínimo que ele está dizendo – se não for pior ainda, se não for tudo obra daquele grupo mesmo.

Como fazer a mais mínima crítica que seja a um judeu é ato que provoca a fúria acumulada em seis mil anos de perseguição, e o eventual autor daquela mínima crítica passa a ser tachado de um anti-sionista furibundo, um nazista, um adorador de Hitler e do diabo, é difícil imaginar o tamanho da cumbuca de marimbondos em que Mamet meteu a mão.  

Sujeito corajoso. Tiro o chapéu para ele.

Homicídio/Homicide

De David Mamet, EUA, 1991.

Com Joe Mantegna, William H. Macy, Vincent Guastaferro, Natalia Nogulich, Robecca Pidgeon, J.J.Johnston, Ving Rhames

Argumento e roteiro David Mamet

Fotografia Roger Deakins

Música Alaric Jans

Produção J & M Entertainment

Cor, 102 min.

***1/2

Título em Portugal: Brigada de Homicídios

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