Cupido Não Tem Bandeira / One, Two, Three


Nota: ★★☆☆

Anotação em 2009: Neste seu filme de 1961, feito logo depois dos maravilhosos Quanto Mais Quente Melhor (1959) e Se Meu Apartamento Falasse (1960), e antes do ótimo Irma La Douce (1963), o grande Billy Wilder errou a mão. Na minha opinião, é claro.

Claro: como é Billy Wilder, tem coisas boas. Há diálogos excelentes, hilariantes, sarcásticos, cortantes. Há uma grande, deliciosa gozação sobre os slogans do comunismo – e também do capitalismo –, que fazem lembrar Ninotchka, de Ernst Lubitsch, o mestre do mestre Wilder. E não é por acaso: Wilder foi um dos roteiristas do filme de 1939. Há gozações sobre tudo – dos ex-nazistas vivendo na Alemanha do início dos anos 70 à estrutura das grandes empresas americanas, passando pela eficiência alemã, pela rivalidade entre americanos sulistas e nortistas, um século depois da Guerra de Secessão, pela paixão dos americanos por títulos de nobreza européia, pela corrida espacial, pelos mísseis colocados por Kruschev em Cuba num dos pontos mais dramáticos da guerra fria.

A trama parte de uma espécie de Romeu e Julieta adaptado à guerra fria: americana milionária se apaixona por jovem comunista. Aliás, exatamente no mesmo ano em que este filme foi feito, 1961, o grande ator inglês Peter Ustinov escreveu e dirigiu uma comedinha que parte exatamente da mesma idéia – Romanoff e Julieta, interpretados pelo galã canastrão John Gavin e pela gracinha um tanto sem graça da Sandra Dee.

Um comunista fanático e a herdeira da Coca-Cola

aone1A ação se passa na Berlim dividida em dois setores, o Ocidental capitalista e o Oriental comunista. O protagonista é um executivo americano, chefe das operações da Coca-Cola na então ex-capital alemã, MacNamara, interpretado pelo veterano James Cagney. MacNamara anda negociando com representantes comerciais soviéticos a instalação de fábricas da Coca-Cola – o símbolo do decadente imperialismo americano – na URSS. Espera, com isso, obter cacife suficiente para tornar-se o diretor-geral das operações da empresa em toda a Europa, sediado em Londres – até já comprou um guarda-chuva para quando for viver na capital britânica. Mas seu chefe, o patrãozão da Coca, um sulista absolutamente conservador de Atlanta, Geórgia, quer um outro favor dele: que cuide bem da sua filha de 17 anos, Scarlett (Pamela Tiffin, na foto entre James Cagney e Horst Buchholz), que ele mandou para a Europa para separá-la do seu mais recente namorado, um roqueiro. Repare-se o nome da garota: Scarlett, como Scarlett O’Hara, a heroína de … E o Vento Levou, o livro best-seller e o filme estouro de bilheteria que mostram a Guerra da Secessão do ponto de vista dos confederados sulistas.

Acontece que Scarlett é uma namoradeira absoluta, incorrigível, contumaz – apareceu homem pela frente, ela se engraça toda, pula no colo dele. No vôo dos Estados Unidos para Berlim já se engraçou com os membros da tripulação

A chegada de Scarlett, para ficar sob os cuidados de MacNamara e sua mulher Phyllis (Arlene Francis) atrapalha todos os planos da família. Phyllis estava de viagem de férias marcada para Veneza, com os dois filhos garotos do casal; e MacNamara pretendia aproveitar a ausência da família para esbaldar-se com Fräulein Ingeborg (Liselotte Pulver), sua secretária loura gostosa e germanicamente eficiente.

Bem, Scarlett vai então se apaixonar perdidamente por Otto Ludwig Piffl (Horst Buchholz), um jovem alemão de Berlim Oriental membro do Partido Comunista e mais ardoroso defensor da ideologia do que Lênin e Stálin juntos. E, claro, os pais da moça vão viajar para Berlim para ver se os MacNamara estão cuidando bem dela. Haverá 200 mil problemas, subtramas, rolos, um atrás do outro – tantos, e a uma velocidade tão rápida, que acabei ficando exausto.

E não é só por isso que o filme acaba sendo cansativo. Mestre Wilder de fato errou a mão, errou a dose, errou o tom, errou na escolha dos atores. O veterano James Cagney, que havia feito dezenas de filmes como gângster, passa os 115 minutos do filme berrando – parece os romanos de Belíssima, de Visconti. Não há sutileza, não há meios-tons – ele berra o tempo todo. É uma interpretação grotesca, assim como a de Horst Buchholz, esse alemão boa pinta que fez parte da carreira em filmes americanos, como Sete Homens e um Destino/The Magnificent Seven. Para piorar ainda mais, tem Pamela Tiffin no papel da heroína de cabeça fresca e muita vontade de dar. Pamela Tiffin, tadinha, foi uma invenção que não deu certo. A moça é ruim, é fraquinha, como essas modelos e/ou ex-BBBetes que a TV brasileira tenta transformar em atrizes. E sequer é bonita.

aone2Wilder escolheu um tom exagerado demais, caricatural demais, que fica espantoso e cansativo. A forma como ele compôs o trio de funcionários soviéticos, e também a secretária alemã, é mais coisa de desenho animado. A seqüência do bar do hotel em Berlim Oriental (na foto), em que a secretaria gostosona acaba dançando em cima da mesa enquanto MacNamara e os três russos negociam, abusa do grotesco, da caricatura.

Mesmo num filme fraco, diálogos sensacionais

Então, o filme só não chega a ser uma porcaria porque há o humor feroz de Billy Wilder, os diálogos sensacionais, inteligentes.  Pego alguns, só uns poucos, no iMDB:

McNamara, a voz em off no início do filme:  – “Alguns policiais da Alemanha Oriental são rudes e desconfiados. Os outros são desconfiados e rudes.”

Outro:

McNamara para seu braço direito, Schlemmer, um alemão que cada vez que se apresenta ao chefe bate os sapatos uns nos outros, como faziam os nazistas ao bater continência: – “Cá entre nós, Schlemmer, o que você fazia durante a guerra?”

Schlemmer: – “Eu estava nos porões.”

McNamara: – “Lutando na resistência?”

Schlemmer: – “Não, nos motores. No subsolo, sabe, o metrô.”

Mais tarde:

McNamara: – “E é claro que você era anti-nazista e nunca gostou de Adolf.”

Schlemmer: – “Que Adolf?”

aone3Depois, quando, diante de McNamara, Schlemmer reconhece um repórter alemão e o cumprimenta em sinal de respeito:

Schlemmer: – “Herr Oberleutnant!”

McNamara: – “Vocês se conhecem?”

Schlemmer: – “Ele era meu oficial superior.”

McNamara: – “No metrô?”

Schlemmer: – “Não, depois disso, quando eu fui convocado.”

McNamara: – “Aha! Na Gestapo!”

Schlemmer: – “Não, não, na SS.”

Austríaco, tendo deixado a Europa nos anos de ascensão do nazismo, Billy Wilder não perdoa, não esquece: mesmo em 1961, no meio da guerra fria, em um filme sobre a guerra fria, 16 anos depois do fim da Segunda Guerra, ele bate na tecla da existência dos ex-nazistas no meio da sociedade alemã. Ele já havia dedicado um filme a este mesmo tema, em 1948, quando a poeira das bombas sobre Berlim ainda nem tinha assentado direito – e que belo filme é A Mundana/A Foreign Affair, com uma Marlene Dietrich esplendorosa, lânguida, fatal, no papel da ex-amante de um chefão nazista agora cortejada por um oficial americano.

Neste filme aqui, ele dá um jeito de criar uma situação para botar Schlemmer, o ex-SS, travestido de mulher (foto acima). Uma das coisas de que Wilder gosta – além de ridicularizar nazistas – é de personagens que se fantasiam, que se travestem de algo que não são, como Ginger Rogers fantasiada de menininha em A Incrível Suzana ou Jack Lemmon e Tony Curtis travestidos de mulher em Quanto Mais Quente Melhor.

Mas Wilder também volta sua língua ferina para gozar os arquétipos do comunismo – e do capitalismo. Lá pelas tantas, MacNamara se surpreende ao ver um dos funcionários russos na sua sala:

– “Você desertou?”

E o russo, numa troça com a frase que marcou o avanço dos colonizadores americanos rumo ao Pacífico: – ‘É um velho provérbio russo: ‘Vá para o Oeste, jovem!’”

Numa outra cena, Otto, o jovem comunista de carteirinha, berra: – “Não vou permitir que meu filho cresça para ser um capitalista.”

Scarlett, a filha do chefão da Coca-Cola: – “Quando ele fizer 18 anos ele pode decidir se quer ser um capitalista ou um comunista rico”.

Ou esta frase de Otto para Scarlett:

– “Vou pegar você às 6h30, porque o trem das 7h parte para Moscou exatamente às 8h15.”

Ou este diálogo entre Scarlett e MacNamara:

Scarlett: – “Você vai gostar dele (de Otto, o jovem comunista). Ele parece com Jack Kennedy, só que é mais jovem e tem mais coisas lá em cima.”

MacNamara: – “Mais cérebro?”

Scarlett: – “Mais cabelo. E, claro, ideologicamente, ele é mais sólido.”

MacNamara: – “Talvez tenhamos votado no homem errado.”

Scarlett: – “Isso não aconteceria na Rússia.”

MacNamara: – “Lá eles não cometem enganos?”

Scarlett: – “Eles não votam.”

Ou esta conversa entre MacNamara e os funcionários soviéticos:

Russo, oferecendo um charuto a MacNamara: – “Pegue um destes aqui.”

MacNamara: – “Obrigado. Hum, feito em Havana.”

Russo: – “Temos um acordo comercial com Cuba. Eles nos mandam charutos, nós mandamos foguetes.”

MacNamara, depois de experimentar o charuto: – “Quer saber? Vocês foram enganados. Esse charuto é danado de ruim.”

Russo: – “Não se preocupe. Mandamos para eles foguetes danados de ruins.”

Há muitas piadas boas, mas o filme é uma decepção. Depois dessa experiência ruim, James Cagney passaria 20 anos sem fazer um filme; só voltaria em 1981, em No Tempo do Ragtime/Ragtime, do mestre checo Milos Forman, um impressionante, desolador painel da sociedade americana no início do século XX, assolada pela injustiça social e o racismo.

No entanto, Cupido Não Tem Bandeira fez sucesso nos Estados Unidos, segundo Pauline Kael, que critica as piadas do filme como sendo de baixo nível. Leonard Maltin deu cotação máxima, 4 estrelas, e até gostou da interpretação exageradérrima do veterano ator: “Cagney é uma maravilha de se ver nesta comédia com ritmo de metralhadora, sua última aparição nas telas até Ragtime (1981). A trilha sonora de Andre Previn usa com inspiração a ‘Dança do Sabre’ de Khachaturian.”

Verdade: a trilha de Andre Previn (que iria musicar em seguida Irma La Douce) é interessante. Não há composição original para o filme; ele apenas faz arranjos para um uso cômico de músicas conhecidas, como essa Dança do Sabre, a Internacional comunista, a Cavalgada das Valquírias de Wagner e a musiquinha patriótica americana Yankee Doodle. E aparece também no filme nada mais, nada menos, que Itsy Bitsy Teenie Weenie Yellow Polka Dot Bikini, aquele roquinho inocente como uma santa que no Brasil virou “Era um biquíni de bolinha amarelinho tão pequenininho que na palma da mão se escondeu’. A canção é tocada à exaustão, na sala de tortura da polícia da Alemanha comunista, para que o jovem Otto confesse que é um espião americano.

A afirmação de Pauline Kael de que o filme foi um sucesso é negada no livro Billy Wilder – Filmographie Complete, de Glenn Hopp, publicado pela Taschen, em que se afirma que o filme não obteve popularidade. O autor usa também a imagem de velocidade de metralhadora sobre o ritmo das piadas do filme, que define como “provavelmente a comédia mais ritmada que o cinema já havia conhecido”.

Cupido Não Tem Bandeira/One, Two, Three

De Billy Wilder, EUA, 1961.

Com James Cagney, Horst Buchholz, Pamela Tiffin, Arlene Francis, Howard St. John, Hanns Lothar, Leon Askin, Liselotte Pulver

Roteiro Billy Wilder e I.A.L. Diamond

Baseado na peça de Ferenc Molnár

Fotografia Daniel L. Flapp

Música Andre Previn

Produção The Mirisch Corporation, Pyramid, United Artists

P&B, 115 min (há versão com 108 min)

**

Título em Portugal: Um, Dois, Três

16 Comentários para “Cupido Não Tem Bandeira / One, Two, Three”

  1. O filme tem uma cena hilária, absolutamente inesquecível.É quando o americano prepara a cilada para o rapaz alemão ser preso logo depois de cruzar a linha da fronteira. A gente já sabe tudo que vai acontecer e isso torna a cena ainda mais divertida. Na verdade, adorei o humor, e até mesmo as caricaturas. Afinal, aquele mundo da guerra fria era fake mesmo.

  2. Bom, também gosto do filme, como a Mary. Sim, as interpretações são caricaturais, as situações também – mas o próprio filme é assumidamente caricatural. O problema, para que ele não seja considerado no nível de outras comédias clássicas de BW, talvez seja justamente o ritmo muito acelerado. Talvez aí BW tenha errado na mão… Acho que Horst Buchholz está muito bem, com uma interpretação adequada ao clima dado pelo diretor. Acho esse filme delicioso – e gostei muito de seu artigo sobre ele.

  3. Ora Sergio, mesmo não sendo um dos seus melhores filmes, WILDER profético. Previu o fim do comunismo, está o POLITIBURO corrupto como sempre o foi. A ambição criticada pelos país do comunismo, tem como origem não o sistema e SIM o ser HUMANO. Como WILDER, cínico de sempre mostra em seus filmes. TALVEZ VOCÊ NÃO GOSTE POR MUITOS MOTIVOS, SÓ ESPERO QUE VOCÊ NÃO SEJA UM VIÚVO DO COMUNISMO, que já morreu !!! Mas como dizem os COMUNISTAS PRATICANTES DO PCdoB ‘COMUNISTA SIM, GRAÇAS A DEUS !’

  4. O filme é uma delícia e o ritmo acelerado é o diferencial, algo que o torna memorável. James Cagney esbanja talento nessa comédia.

  5. Adoro esse filme. Adoro o ritmo louco. Adoro o tom caricatural. O autor da resenha deve ser um viúvo do muro de Berlim, como um amigo meu que também não gosta desse filme. Só pode.

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