Algo Como a Felicidade / Stestí


Nota: ★★★½

Anotação em 2009: Eis aí um filme extraordinário, literalmente extra-ordinário, que me deixou encantado na primeira tomada, depois me deixou zonzo feito o Pedro Rocha ao encontrar o carrossel holandês, perdido feito cego no meio do tiroteio, depois me deixou pasmo diante de tanto talento, depois me deixou entusiasmado por parecer dizer coisas nas quais acredito profundamente, e depois me deixou zonzo de novo sem entender muito bem o que ele quis dizer.

Como eu já disse aqui algumas vezes, sobre alguns raros filmes, não é pouco.

A primeira tomada é um plano-seqüência. Estamos em um bar simples, humilde, fuleiro; um homem de uma certa idade canta uma música acompanhando-se ao violão; sentadas ao lado dele à mesa estão duas mulheres, de uns 50 e muitos anos, bem perto uma da outra. Suavemente, a câmara se aproxima um pouco da mesa; uma das mulheres se levanta, vai até a janela do bar que dá para uma rua; neste momento, surge o nome do filme na tela – Stestí -, e o som muda; continua o violão, continua a mesma música, só que agora o som é muito mais límpido e o violão é muito mais bem tocado; não houve corte algum, a câmara vai sempre suavemente se aproximando da mulher que se levantou e foi até a janela; ela está de costas, a câmara vai chegando perto dela, até pegar seu rosto de perfil, de lado.

Fiquei chapado com a beleza simples da cena, com o fato de ser um plano-seqüência, com aquela coisa sutil da passagem de um violão tocado por um amador num bar para um violão tocado por um profissional em estúdio, e voltei o DVD para ver de novo. Voltei ainda mais uma vez, e me peguei falando alto comigo mesmo (vi o filme sozinho, Mary no trabalho): “O cara sabe”.

Nunca tinha ouvido falar do diretor Bohdan Slama, mas ele sabe fazer cinema.

A segunda tomada é outro plano-seqüência: num aeroporto, uma garotinha bonita de uns 25 anos se despede do namorado, que vai embarcar. Ao lado dela está outro rapaz, da mesma faixa de idade.

O diretor já tinha me ganhado no primeiro plano-seqüência; no segundo, me encantou mais ainda.

A partir daí, no entanto – e sempre usando planos-seqüência; todo o filme é composto por planos-seqüência -, ele apresenta tantos personagens, sem explicar direito quem é quem, que comecei a me sentir perdido, tonto, zonzo. Com uns 20 minutos, quase meia hora de filme, estava tendo dificuldade para acompanhar a ação; pior ainda – me angustiava o fato de não saber em que país se passa a história. Não tinha lido nada sobre o filme, não conhecia o diretor, nenhum ator; tinha pego o DVD na prateleira de cinema europeu, para testar um filme desconhecido, experimentar – e me irritava não saber onde viviam aquelas pobres pessoas. Claro, era Europa Oriental, muito provavelmente país que saíra do comunismo, por causa do tipo de língua, e do desalento das pessoas, a vontade de emigrar para os Estados Unidos, as dificuldades de achar emprego – mas poderia ser qualquer um, Hungria, Romênia, até Polônia. Aí fiz uma coisa que nunca faço: fui ler o texto da contracapa do DVD antes de terminar de ver o filme.

Ah, sim, é República Tcheca.

Voltei ao começo do filme, revi algumas cenas, e só então fui adiante. Não dá para saber se outras pessoas terão a mesma dificuldade que tive para entender quem era quem entre tantos personagens – pode ter sido uma coisa de momento, sei lá.

Basicamente, são três personagens centrais, mas aparecem também todas as suas famílias, e de fato o diretor Bohdan Slama lança muitas pessoas na história ao mesmo tempo, num ritmo frenético; as informações sobre cada um dos personagens – que vou reunir logo abaixo – vão sendo dadas aos poucos, ao longo do filme, de forma desordenada.

Então, são três personagens centrais, três amigos de longa data. Temos Monika (Tatiana Vilhelmová), a moça que se despede do namorado no aeroporto na primeira cena; ela vive com os pais num apartamento modesto, mas decente, em um conjunto habitacional numa periferia de cidade industrial, e o namorado estava emigrando para os Estados Unidos; assim que puder, mandará passagem para que Monika vá também. O pai de Monika está desempregado faz tempo, para irritação da mulher, que o critica sempre. Monika tem um emprego humilde em um supermercado.

E aí temos Toník (Pavel Liska), o amigo de Monika que estava com ela na despedida do namorado que vai embora. Toník tem um jeitão meio hippie, meio desleixado, anda sempre com uma roupa suja, surrada, o cabelo grande meio sebento; seus pais moram no mesmo prédio em que vive a família de Monika, mas Tonik não está com os pais; mora com uma tia, irmã do pai (pai e irmã não se dão, não se falam há anos, por algum motivo que não é claramente explicado), numa casa antiga, caindo aos pedaços, junto da fábrica em que o pai de Tonik trabalha. A tia de Tonik (Zuzana Kronerová) é a mulher da primeira seqüência, a que caminha para a janela. Toník e a tia estão sempre tentando reformar a casa, mas bem devagar, por causa do dinheiro curto.

E temos ainda Dasha (Anna Geislerová), amiga de Monika e Toník, da mesma idade deles, entre 25 e no máximo 30 anos, que mora no mesmo prédio do conjunto habitacional, e, apesar de tão jovem, tem dois filhinhos, Denis e Pat; o apartamento em que vivem é uma imensa bagunça – somente comparável à bagunça mental da moça. O pai das crianças sumiu quando ela estava grávida do segundo; ela agora namora um sujeito casado, pai de duas filhas; ela é absolutamente irresponsável, e vai, rapidamente, ter um surto psicótico que a levará para um hospital para doentes mentais. Monika e Toník assumirão a responsabilidade de cuidar dos dois garotinhos.

Foi ao ver a bagunça mental de Dasha – antes que ela surtasse de vez – que me lembrei da minha velha tese sobre paternidade, maternidade. Alguns anos atrás, cheguei a anotar um lead desta tese:

Os dogmas religiosos e a biologia que me perdoem, mas a lógica humana indica que Deus (ou a natureza, para quem não acredita em Deus) errou profundamente. Nenhum homem ou mulher deveria ter a capacidade de ser pai ou mãe – até prova em contrário. Ser pai ou mãe não deveria ser uma obrigação decorrente da biologia, deveria ser uma opção. Mais ainda: para permitir que alguém decidisse ser pai ou mãe deveria haver alguma espécie de vestibular. Só poderia ter filhos quem passasse em concurso. Concurso sério, com prova de títulos e de conhecimento, e com banca examinadora exigente.

Dasha jamais passaria nesse concurso. Monika e Toník certamente passariam – mas não têm essa chance.O filme vai mostrando que Toník na verdade é profundamente apaixonado por Monika – em silêncio, às escondidas; ela só vai saber disso já quando o filme está se encaminhando para o fim.

São vidas muito amargas, muito tristes, sem esperança, a de todos esses pobres personagens. Monika e especialmente Toník sofrem demais, comem o pão que o diabo amassou. Seus pouquíssimos momentos próximos de alguma coisa parecida com a felicidade são brutalmente estragados pelo destino.

Além de construir belos planos-seqüências, o diretor Bohdan Slama demonstra um talento absurdo na direção de atores. Parece assim uma espécie de Mike Leigh checo. Todos os atores – os jovens, os velhos, as crianças – estão brilhantes, extraordinários, excepcionais. Não é à toa que o filme colecionou 17 prêmios em festivais ao redor do mundo.

Algo Como a Felicidade/Stestí

De Bohdan Slama, República Checa-Alemanha, 2005.

Com Tatiana Vilhelmová, Pavel Liska, Anna Geislerová, Zuzana Kronerová

Argumento e roteiro Bohdan Slama

Produção Ceská Televize. Estreou em São Paulo 20/7/2007

Cor, 100 min.

***1/2

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