A Innisfree de John Ford

Tempos atrás, em viagem à Irlanda, meu amigo Anélio Barreto visitou a pequena cidade em que John Ford filmou Depois do Vendaval/The Quiet Man, um filme pelo qual ele, eu e um grande monte de gente somos apaixonados. Não sei de outro jornalista brasileiro que tenha tido o  privilégio de conhecer Innisfree, aquela cidade de sonhos onde o personagem de John Wayne se apaixona à primeira vista por Mary Kate Donahe-Maureen O’Hara.

Ele conversou com as pessoas onde o filme foi rodado em 1951, e fez um maravilhoso texto que publicou no jornal O Estado de S. Paulo. Desde que comecei a fazer este site, tinha vontade de publicar a reportagem dele aqui. Agora que revi o filme e anotei sobre ele, aí está.

 Texto de Anélio Barreto para o Caderno 2 de O Estado de S. Paulo, publicado em 14 de agosto de 1991

 CONG – Um dia um sujeito chamado Minnelli, Vincente Minnelli, fez um filme com o nome de Brigadoon. Uma bela história: dois caçadores viajam pela Escócia e encontram uma pequena vila que vive um dia em um século. Em Brigadoon, quando as pessoas dormem à noite e acordam pela manhã, um século se passou. Claro: tudo truques, tudo coisas do cinema. Mas lá, naquela pequena vila, eles são incrivelmente felizes um dia a cada cem anos.

Conheço uma história melhor. Outro sujeito – seu nome era Ford, John Ford – fez um filme em uma vilazinha na Irlanda chamada Innisfree (ou Cong?). Cong (ou Innisfree?) vive todos os dias do ano, todos os anos, e é feliz – absolutamente feliz – três meses em 12. Nos outros nove, tem problemas. Em Cong – que John Ford chamou de Innisfree – todos os dias, às cinco da tarde, um grandalhão desce de um trem e, poucos minutos depois, apaixona-se por uma ruiva lindíssima que vê em um belo campo verde conduzindo ovelhas. O nome do grandalhão é John Wayne. O da ruiva, Maureen O’Hara. No filme – que teve o título original de The Quiet Man, O Homem Calmo, e no Brasil foi chamado de Depois do Vendaval, Wayne era Sean Thorton e, Maureen, Mary Kate Danaher.

Disse que em Cong – ­uma vila que os irlandeses mais modestos dizem ter 200 habitantes, e os falas­trões garantem 250 – isso acontece todos os dias, pontualmente, às cinco da tarde. Existe um castelo medieval em Cong, o Ashford Castle, atualmente um hotel, que exibe, em seu sistema interno de vídeo, diariamente, às cinco, o The Quiet Man. A Irlanda é um país que vive quatro horas à frente do Brasil. Portanto, os apaixonados pelo bom cinema já podem ficar sabendo que, quando nossos relógios marcam uma da tarde aqui, o trem apita lá em Cong (Innisfree), e o grandalhão desce.

Como é bonita essa história que está sempre recomeçando… E aqui já não falo apenas em Maureen O’Hara e John Wayne, mas também de todos aqueles que viveram e vivem o filme, e que aparecem, ou não, na tela. Falo do senhor O’Murphy, da simpática Vera O’Connor, de Stephen Lydon, o pescador, de Ena Flynn, a adorável velhinha que me brindou com uma torrente de palavras (co­mo falam esses amáveis irlandeses…) para contar que tal cena foi filmada aqui, a outra lá, e que aquela casinha ali, com vasos de flores nas janelas e na calçada, é a mesma em que vivia o velho senhor Dan Tobin (Francis Ford), que praticamente ressuscitou para assistir à luta entre John Wayne e Victor McLaglen.

Falamos do grandalhão, Wayne, e é preciso falar mais. No filme ele chega a Cong – nasceu ali – para comprar a casa de seus pais e viver nela. Vê Mary Kate no cami­nho, e até duvida do que viu. “Puxa, aquilo existe? Não pode ser”, pergunta ao cocheiro, Michaelenn Oge Flynn, o engraçadíssimo ator Barry Fitzgerald, que responde “Ora, bobagem, homem. “Ela é apenas uma miragem trazida pela sua terrível sede”.

Não vou contar a história, é claro, porque vocês certamente vão querer vê-la em vídeo. Ficam aqui apenas alguns pontos, para que todos saibam do que estará falan­do o povo de Cong no momento em que lhes passar a palavra: John Wayne/Sean Thorton apaixona-se por Maureen O’Hara/Mary Kate, como já disse, e encarrega o cocheiro Michaelenn (a pronúncia é Micalín), que é também o casamenteiro local, de pedi-la em casamento para ele. A resposta é não: Red Will Danaher (o ator Victor McLaglen), irmão de Mary, recusa. Segue-se então uma trama envolvendo o padre católico Peter Lonergan (Ward Bond), o pastor protestante Cyrill Playfair (Artur Shields), a viúva Tillane (Mildred Natwick) – por quem Will Danaher é apaixonado -, Michaelenn e muita gente mais.

Outro ponto importantíssimo da trama: o dote de Mary Kate. A história, filmada em 1951, retrata a Irlanda de 1920, quando os casamentos, lá – assim como em muitas outras partes do mundo -, eram também um negócio: o candidato a marido dizia o que tinha, tomava conhecimento do dote da escolhida e formalizava, ou não, o pedido. Os pais e, na falta deles, os irmãos mais velhos, respondiam pela noiva.

Disse, na introdução deste texto, que Cong é absolutamente feliz três meses em 12, e nos outros tem problemas. Explico: nos meses felizes -julho, agosto e setembro – é temporada de pesca na Irlanda, e Cong está junto a um lago internacionalmente conhecido co­mo um dos melhores para a pesca de salmão e truta, o Lago Corrib. Nesses 90 dias ela fica repleta de pescadores que lotam os 80 apartamentos do Ashford Castle e aproximadamente uma dezena de pensões espalhadas por uma meia dúzia de ruas que formam a cidadezinha. Isso significa dinheiro. Cong vive do turismo – a pesca – e do que produz no campo, basicamente madeira. E aí está o problema: não há muito que fazer ali fora da temporada, e muitos têm de ir a outros lugares para conseguir trabalho. O que explica o pequeno número de habitantes: com a saída de seus filhos, a população de Cong não cresce. Não fiquem, entretanto, muito preocupados com ela: os meses de felicidade compensam e, fazendo as contas, nota-se que é possível ganhar neles dinheiro suficiente para o resto do ano.

Conversemos então com habitantes reais da mágica Innisfree do diretor John Ford. Eles vão falar do Depois do Vendaval e vocês verão que, de fato, o filme ali ainda faz parte da vida. A senhora Joanne Gibbons falou de Michaelenn com um brilho de saudade nos olhos. Essas pessoas parecem sentir que, naquelas sete semanas do ano de 1951, a história realmente aconteceu.

Revival

A senhora Joanne Gibbons é dona do The Quiet Man, o coffee-shop da cidade. Seu delicioso café irlandês – café, um pouco de uísque, açúcar e creme – é uma atração para todos em Cong, moradores e turistas. Para estes, entretanto, mais do que o café, são o nome da casa, as fotos do Depois do Vendaval espalhadas pelas paredes e a possibilidade de conversar com a senhora Gibbons sobre o filme o motivo principal da visita. Ela conta:

“Estou sentindo assim como que um revival do The Quiet Man de uns anos para cá aumentou o número de pessoas que vêm aqui por causa dele. Eu não estava aqui quando o filme foi feito, mas sei muita coisa porque meu marido me contou. Em 1951, o ano das filmagens, esta casa servia café, mas nem tinha nome, a placa dizia apenas Café. E a equipe de filmagem vinha sempre aqui e eles costumavam dizer ‘vamos lá tomar um café no café do Quiet Man’, e a coisa pegou. Mas foi só muito tempo depois, em 1982, que meu marido colocou a placa atual.”

Uma das fotos da parede mostra a charrete em que Mary Kate e Sean Thornton namoravam, mas a visão é estranha para quem conhece o filme: não é Barry Fitzgerald, o Michaeleen, que a dirige, e Mary Kate está ao lado, junto ao povo, observando atentamente a cena. O que é essa foto, senhora Gibbons?

Ela pega o quadro da parede, observa, diz que nunca havia prestado atenção nisso, pede licença por um minuto, atravessa a rua e vai para a loja do senhor Murphy. Volta em seguida, alegre:

“São os dublês”, explica. “É um ensaio para as filmagens. Todos tinham dublês, e o senhor Ford ensaiava com eles todas as cenas antes.”

“Se eu gosto de contar essas histórias? Gosto muito, mas às vezes não tenho tempo. Muitas vezes simplesmente digo aos turistas: vão passear pela cidade. Vejam tudo, olhem em volta e vocês verão o filme.”

Juventude

Geraldine Lynch, 20 anos, é bem um exemplo do que acontece com os jovens em Cong: juntou suas coisas e vai partir. Contou-me que viajaria para a Alemanha na semana seguinte. Tem amigos na Alemanha e eles arrumaram trabalho para ela em uma floricultura.

“É difícil para a gente ficar aqui ­- quase não há trabalho, não dá para progredir. Nem para estudar: quem quer fazer o ginásio tem que ir a Ballinrobe, a algumas milhas. Para ir ao cinema a gente também tem que sair, tem que ir a Gallway, 28 milhas (42 quilômetros). Nossa diversão aqui é ir ao pub à noite.”

Em Cong, Geraldine trabalhava no Ashford Castle, e via o Depois do Vendaval em vídeo.

“Era o costume naquele tempo: Mary Kate não poderia se casar se o irmão não deixasse. Hoje, é claro, seria diferente.”

Relíquia

Pat McDonnel, 18 anos, tem um emprego muito especial: ele conduz os turistas pela cidade em – nada mais, nada menos – que a própria charrete com que Sean presenteou Mary Kate no Depois do Vendaval. Aposentada durante muitos anos, a charrete foi toda restaurada e hoje percorre as ruas de Cong como há 40 anos. Tem uma única diferença: a inscrição The Quiet Man na pequena porta. O que Pat acha do filme?

“Ele é muito bom em tudo, todo pedaço é bom. Nem dá para dizer se eram certos ou errados os costumes antigos, porque o filme é perfeito.”

Testemunha

A adorável senhora Ena Flyn fala como todo bom irlandês… e como eles falam. Mas, mesmo para um irlandês, ela fala muito: chegou a responder a uma pergunta antes que eu a fizesse.

Por favor, senhora…

“Você viu o The Quiet Man?”, foi logo perguntando. E continuou, sem esperar pela resposta.

“Foi bem ali, naquela casa, que o velho morria na hora da briga. Aquela casa com as flores. Lá, naquela rua, John Wayne e Maureen O’Hara saíram para namorar. Foi lá também que eles fizeram aquela festa para o bispo. A briga foi mais para lá, perto do rio – ­ tem um lugar ali, bem em frente à abadia, em que Victor McLaglen caiu na água. O bar ficava na loja do Murphy; o senhor precisa conversar com ele, ele sabe mais do que eu, porque minha cabeça já anda esquecendo as coisas. E também com Vera O’Connor, e …”

4 Comentários para “A Innisfree de John Ford”

  1. Achei a matéria de Anélio Barreto excelente, uma delícia de ler, mas nos tempos de hoje ela estaria defasada. Manchete de página, abaixo do selo “Exclusivo”: “Andamos na charrete de Depois do Vendaval”. Da minha parte, prefiro o texto calmo, agradabilíssimo, de Barreto.
    Valdir Sanches

  2. Tem toda razão, Valdir. E depois daquele título viria uma denúncia e uma reportagem investigativa: quem foi que permitiu que essa charrete ficasse tanto tempo inativa? Houve superfaturamento no restauro? etc, etc, etc.
    Não por acaso, estou incluindo a Innisfree de John Ford em um livro que estou terminando – e que não sei se um dia será publicado – com o título ‘Histórias que os jornais não contam mais’. Anélio Barreto.

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