Petulia


Nota: ★☆☆☆

Anotação em 2008: Tem filme que prescreve. Este é um desses casos típicos. É 1968 em estado puro – o tom da época do hippismo, a San Francisco dos anos do flower power, a absoluta falta de lógica e de senso.

Um exemplar perfeito do cinema de Richard Lester, o diretor irreverente, iconoclasta do então novo cinema inglês que tinha feito os dois filmes dos Beatles, Os Reis do Ié-Ié-Ié/A Hard Day’s Night e Help! – coisa tão típica daquela época, a graça que vem do nonsense total. Hoje é uma coisa só datada, incompreensível, sem graça nenhuma – a não ser, é claro, a beleza sem jeito de Julie Christie.  

Meses depois de ter escrito o parágrafo acima, vi que o Leonard Maltin, o grande best-seller dos guias de filmes americanos, adorou, caiu babando pelo filme. “Brilhante filme”, diz ele, “tendo como cenário a San Francisco de meados dos anos 60, sobre médico recém-divorciado e sua relação com uma kook mal casada. Excelentes atuações, especialmente as de Scott e Knight, em um dos melhores filmes da década.”

Kook, o adjetivo que está no título do livro em que o filme se baseia e também na resenha do Maltin, é – aprendo com o Dictionary of English Language and Culture da Longman -, na linguagem informal americana, “a person whose ideas or behaviour are unusual or silly”. Idéias ou comportamentos não usuais ou tolos. Como a palavra kook ou seus derivados não constam dos meus dicionários Inglês-Português, fico imaginando qual seria o adjetivo adequado para a personagem que a gracinha da Julie Christie interpretou no auge da juventude e da fama. Doidinha? Tolinha? Esquisitinha? Lelé da cuca? Lelezinha? Acho que lelezinha seria o melhor – mas creio que ninguém com menos de 40 anos em 2008 sabe o que é lelé, porque as gírias, afinal, são datadas como alguns filmes que se apóiam sobre os maneirismos e modismos de uma determinada época. 

E aqui daria para filosofar muito.

A gente gosta dos filmes conforme a idade que a gente tem. Os filmes têm que ser compreendidos, gostados ou desprezados dentro de seu contexto; fora dele, tudo fica diferente.

Como a guitarra de Blow Up, de 1966, o primeiro filme de Michelangelo Antonioni fora da Itália, que no Brasil ganhou o grotesco título de Depois Daquele Beijo – talvez ele mesmo hoje um filme datado. A cena é maravilhosa, extraordinária, antológica: dentro da boate em que uma enfurecida banda toca um rock pauleira, a guitarra quebrada pelo guitarrista é objeto do mais insaciável desejo, é disputada a tapas, socos. Aí o personagem central, o fotógrafo interpretado por David Hemmings, acaba pegando um pedaço da guitarra, justamente a haste, sai da boate carregando aquilo como se fosse um troféu valiosíssimo enquanto lá dentro o povo continua se esfalfando para conseguir um naco daquela madeira – como se fosse da cruz de Cristo – e, uma vez na rua, olha pra haste que carrega, não sabe o que fazer com ela, joga fora. E ninguém que passa pela rua dá a menor bola para aquilo, aquele lixo. Saiu do contexto, perdeu o valor.

Nos anos 60, minha geração babou pelos filmes que Lester fez com os Beatles; todo mundo viu A Hard Day’s Night e Help! pelo menos dez vezes cada; eu vi, e adorei.

Será que alguém com menos de 30 anos conseguiria ver hoje pela primeira vez um desses filmes e adorar?

Não sei; tenho sérias dúvidas.

O Maltin seguramente viu Petulia quando era novo, quando o contexto era aquele lá, os anos 60, o flower power, a irreverência total, a necessidade de fugir dos esquemas conhecidos, do padrão, da gramática velha do cinemão, e blábláblá. Se eu tivesse visto na época, certamente teria adorado, como na época adorei A Hard Day’s Night, Help!, os filmes do novo cinema inglês de Tony Richardson, os filmes de Gláuber Rocha, todos os Godard que passavam pela minha frente.

E, passadas as décadas, muitas vezes a gente revê um filme adorado na juventude e ainda se encanta com ele. Mesmo sabendo que é datado – mas, afinal, aquela era a nossa data.

Mas gostar de um filme absolutamente datado quando a gente não o viu na data certa é muito mais difícil. 

Tem alguns que são tão datados que não dá para gostar mesmo que a gente tenha gostado na época original. Godard e Gláuber, por exemplo: como é possível ter saco, hoje, pra ver aquelas coisas do Godard e do Gláuber dos anos 60?

Volta e meia penso nisto. Os filmes do Truffaut e Polanski, por exemplo, estão tão frescos, saborosos, gostosos, competentes hoje quanto quatro décadas atrás. Os de Godard e Gláuber prescreveram. E é simples entender a diferença: ao contrário de Godard e Gláuber, Truffaut e Polanski não fizeram filmes baseados em modismos, maneirismos, criativóis de uma determinada época. Suas narrativas são clássicas, básicas. O que é clássico, básico, permanece; os maneirismos ficam datados e chatos.

Como diz a propaganda genial da Levis: you always get back to the basics. Tem a calça boca de sino, tem a de cintura baixinha, tem as com florzinhas, tem a apertadíssima, mas essas sempre saem de moda – fica a cinco bolsos, clássica, básica.

E, aliás, como é possível o Maltin dizer que Petulia é um dos melhores filmes da década? Na década de 60, Alain Resnais fez A Guerra Acabou, Eu Te Amo, Eu Te Amo; Truffaut fez Jules et Jim, Farenheit 451, A Noiva Estava de Preto, Beijos Roubados; Louis Malle fez 30 Anos Esta Noite; Jacques Demy fez Os Guarda-Chuvas do Amor; Agnes Varda fez As Duas Faces da Felicidade; Claude Lelouch fez Um Homem, Uma Mulher; Luchino Visconti fez O Leopardo, Vagas Estrelas da Ursa, O Estrangeiro, Os Deuses Malditos; Federico Fellini fez Oito e Meio, Julieta dos Espíritos; Michelangelo Antonioni fez O Eclipe, Blow Up, Zabriskie Point; Mario Monicelli fez Os Companheiros, O Incrível Exército de Brancaleone; Ingmar Bergman fez O Silêncio, Persona; Luis Buñuel fez O Anjo Exterminador, A Bela da Tarde; Roman Polanski fez Repulsa ao Sexo, O Bebê de Rosemary; David Lean fez Lawrence da Arábia, Doutor Jivago; Alfred Hitchcock fez Os Pássaros, Marnie;  Arthur Penn fez O Milagre de Annie Sullivan, Mickey One, Caçada Humana, Bonnie & Clyde, Stanley Kubrick fez Doutor Fantástico, 2001 – e ainda teve A Primeira Noite de um Homem, Bonequinha de Luxo, Butch Cassidy, Meu Ódio Será Tua Herança, Os Desajustados, O Julgamento de Nuremberg, My Fair Lady

Petulia, um dos melhores filmes da década? Fala sério…   

Um acréscimo em julho de 2009: Acho que o raciocínio que fiz aí em cima sobre filme datado está basicamente correto. Mas há um erro que, pelo respeito à verdade, quero corrigir. Estava agora folheando meus cadernos antigos, à procura de uma informação, e lá está anotado que vi, sim, Petulia, em 1969, aos 19 anos de idade. Não me lembrava disso quando fiz a longa anotação acima; não me lembrei de nada do filme, ao vê-lo em 2008; não me marcou, não ficou na memória. Feita a correção, mantenho as opiniões que dei acima.

 

Petulia

De Richard Lester, EUA, 1968. 

Com Julie Christie, George C. Scott, Shirley Knight, Richard Chamberlain

Roteiro Lawrence B. Marcus

Baseado no livro Me and the Arch Kook Petulia, de John Haase

Cor, 105 min

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