O Edifício Yacoubian / Omaret yakobean


Nota: ★★★½

Anotação em 2008: Eis aí um grande filme. E um filme egípcio – não me lembro de ter visto outro filme produzido lá. E é um filme que em tudo parece vir de uma cinematografia madura, sólida.

Tudo é bem feito, bem realizado – câmara (nota-se que o diretor domina perfeitamente o uso da câmara desde bem o início), fotografia, montagem (alternam-se tomadas longas, em momentos em que elas são mais expressivas, com tomadas bem curtas, rápidas, nas cenas de ação dos terroristas, por exemplo), música (extraordinária, absolutamente extraordinária); elenco homogeneamente competente, bem dirigido.

O diretor Marwan Hamed, que, segundo o IMDB, havia feito apenas um filme antes deste aqui, em 2001, parte de um belo prédio de apartamentos desenhado no estilo europeu por um arquiteto italiano e construído nos anos 30 no centro do Cairo por um armênio, o Yacoubian que dá o nome do edifício e do filme, para traçar um vasto, amplo, ambicioso painel da sociedade egípcia de hoje. Através das histórias de uma dezena de personagens muito bem construídos, o filme fala de corrupção, ganância, religião, desigualdade social, preconceito, classismo, opressão das mulheres numa sociedade machista, luxúria, homossexualismo, fanatismo islâmico. Um assombro.

Já na abertura o filme mostra talento: a história do Edifício Yacoubian, um pouco o reflexo da própria história do Egito ao longo de mais de sete décadas, é contada no meio dos letreiros iniciais por um locutor sobre imagens primeiro em preto-e-branco, depois em cores, como se fosse um daqueles cinejornais da primeira metade do século XX. Sabemos então, antes mesmo do início da ação, que os quartinhos no teto do prédio, antes usados como despensa pelas famílias riquíssimas que possuíam os apartamentos, hoje formam uma pequena favela. “O telhado virou ‘coelhário’, com uma família em cada ‘gaiola’. O edifício tinha mudado, todo o país tinha mudado.”

Os personagens a que seremos apresentados em seguida vivem tanto nos antigos, amplos, ricos apartamentos, agora um tanto decadentes, quanto na favela no último andar.

Alguns desses personagens:

Zaki El Dessouki, ou Zaki Pasha (Adel Imam), é um velho rico, que não trabalha, vive da fortuna acumulada por seu pai, um grande arquiteto, e é um incorrigível mulherengo. Estudou engenharia em Paris, nunca casou, é amigo de uma sofisticada mulher, Christine, que tem um belo restaurante e canta nele canções como La Vie en Rose; vai ter uma briga feia com a irmã, com quem divide um belíssimo apartamento, e a partir daí passará a morar no apartamento que tem no Edifício Yacoubian, antes usado apenas como sua garconnière.

Botaina (Hend Sabri) é uma jovem linda e pobre, que mora na favela em cima do prédio; o pai morreu deixando dívidas e ela trabalha para ajudar a sustentar a mãe e os irmãos – e constantemente tem que mudar de emprego, porque os patrões ou chefes estão sempre tentando abusar sexualmente dela em troca da manutenção do próprio emprego. No início do filme, namora o filho do porteiro-zelador, Taha.

Taha (Mohamed Imam) tenta, através dos estudos, ascender socialmente; é aplicado, tem notas boas; sonha em entrar para a polícia, mas sua origem humilde o impedirá de ter o emprego. Recusado pelo Estado, abandonado pela namorada, liga-se cada vez mais a organizações islâmicas radicais.

Hatem Rachid (Khaled El Sawy), redator-chefe do jornal em língua francesa Le Caire, é homossexual numa sociedade que mais ainda que as outras rejeita de forma absoluta o homossexualismo. Mora em um dos apartamentos do edifício. Veremos que ele usará a posição social e o dinheiro para seduzir homens pobres, humildes.

Haj Azzam (Nour El-Sherif) é um comerciante do bairro que enriqueceu demais (e só mais para o final o espectador ficará sabendo exatamente qual a principal fonte de sua grande riqueza); copta num país dividido entre os coptas (que seguem os rituais cristãos egípcios) e os muçulmanos, cheio de apetite sexual (como diversos outros personagens do filme), usará os conselhos de um religioso para se permitir um segundo casamento, para o qual compra uma viúva pobre.

Esses personagens trágicos, tristes, sem horizontes – é o que parece nos querer dizer o diretor – não são de todo más pessoas; todos têm suas falhas, algumas maiores do que as outras; a questão é que a sociedade egípcia, toda a organização social, se baseia em valores intrinsecamente ruins; tudo acaba se baseando no dinheiro – e, para consegui-lo, muitos dos personagens farão de tudo, de todos os tipos de sujeira possíveis.

O iMDB tem pouquíssimas informações sobre o filme; a caixinha do DVD informa que ele ganhou o prêmio de melhor diretor estreante nos festivais de Tribeca e Montréal, e de melhor ator para Adel Imam na Mostra de Cinema de São Paulo de 2006. Diz ainda que deputados egípcios chegaram a pedir no Parlamento o corte de cenas do filme – certamente as que mostram a corrupção endêmica no governo. Dentro da perspectiva deles, os deputados egípcios estavam certos: o filme mostra um gigantesco mar de lama.

Belo filme.

O Edifício Yacoubian/Omaret yakobean

De Marwan Hamed, Egito, 2006.

Com Adel Imam (Zaki El Dessouki), Nour El-Sherif (Haj Azzam), Hend Sabri (Botaina), Youssra (Christine), Essad Youniss (Dawlat), Ahmed Bedir (Malaak), Khaled El Sawy (Hatem Rachid), Khaled Saleh (Kamal el Fouly), Ahmed Rateb (Fanous), Mohamed Imam (Taha El Shazly)

Roteiro Wahid Jamid

Bas na novela de Alaa’ Al-Aswany

Cor, 161 min

***1/2

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