Crown, o Magnífico e Thomas Crown – A Arte do Crime / The Thomas Crown Affair


Nota: ★★★☆

Resenha na coluna O Melhor do DVD, no site estadao.com.br, em 2000: Bem no comecinho, nas primeiras tomadas, Thomas Crown – A Arte do Crime se define. Primeiro, há uma pequena, curtíssima, e bela pirotecnia: mostra-se Nova York vista de um satélite; em rápidas tomadas, em ritmo frenético, nos aproximamos de Manhattan, do Central Park, do relógio carésimo do personagem central. Isso dura menos que meio minuto, mas já está lá: estamos diante de um filme de muitos exageros, coisas rebuscadas, superlativas. Em segundo lugar, mas ainda nessas primeiras tomadas, ainda no início da apresentação, vemos Faye Dunaway; ela faz uma psicóloga, e está em uma sessão de terapia, atendendo Pierce Brosnan. A ação ainda nem começou, mas já está lá: estamos diante de um remake, uma refilmagem, uma nova versão.  

Nos comentários em áudio ao longo do filme no DVD, o diretor John McTiernan conta o que é óbvio: ele colocou Faye Dunaway de cara para de cara lembrar ao espectador que esta é a refilmagem de Crown, o Magnífico – o título original dos dois filmes é exatamente o mesmo, The Thomas Crown Affair, embora os distribuidores brasileiros tenham preferido criar títulos diferentes.

Ele poderia ter fingido que não estava nem aí, e feito o seu remake sem chamar atenção para o fato de que é um remake. O cinema americano faz isso todo dia, no mínimo dia sim, dia não. Mas, apesar de ter feito algumas bombas na vida (Duro de Matar 1 e 3, O Último Grande Herói), McTiernan não é bobo. Sabe muito bem que The Thomas Crown Affair foi marcante, virou cult para muita gente, e que Steve McQueen, morto há 20 anos, está tão em voga hoje quanto estava em 1968, quando o primeiro filme foi feito (nos últimos meses, a TV americana mostrou três diferentes documentários sobre ele, ele está na capa de revistas). Então, o remake se aproveita da fama do original, joga com ele, brinca com o espectador, coloca nas primeiras tomadas a atriz que fez a protagonista 31 anos antes. Mais tarde, quando o Thomas Crown 1999 estiver dançando com Catherine Benning, a protagonista 1999, o espectador ouvirá a música tema do filme de 1968 – e ela aparecerá ainda duas outras vezes, a última nos créditos finais, em uma nova (e bela) gravação de Sting. (Fala-se da canção mais abaixo nesta resenha.)

acrownnovoA trama básica é a mesma, há diálogos quase idênticos, situações extremamente parecidas. E, no entanto, há diferenças abissais entre os dois filmes, entre as histórias dos dois filmes – deixando de lado qualquer tentativa de comparação entre os dois casais de atores principais, Steve McQueen no auge do charme e Faye Dunaway no auge da beleza (e que beleza), de um lado, e Pierce Brosnan e Rene Russo (foto ao lado), eles também belos e charmosos, nada contra eles, de outro. A comparação entre os dois filmes é fascinante, e fornece um riquíssimo painel sobre as diferenças da estética, da moda, dos modismos, dos gostos, das manias, dos valores de cada um dos períodos, o final dos anos 60 e este final dos 90.

Infelizmente, o Crown de 1968 ainda não foi lançado no Brasil em DVD. Mas, como vale ver a nova versão, e vale ainda mais (re)ver também o filme de 1968, dá para pegar o VHS, ou comprar o DVD americano. (O filme só seria lançado em DVD no Brasil vários anos depois.)

O quadro abaixo é só um aperitivo: 

 

  Crown, o Magnífico/The Thomas Crown Affair, 1968. Thomas Crown – A Arte do Crime/ The Thomas Crown Affair, 1999.
Produção EUA, 1968. EUA, 1999.
Diretor Norman Jewison.Ele tinha acabado de fazer grande sucesso com No Calor da Noite, com Sidney Poitier e Rod Steiger, sete indicações e cinco vitórias no Oscar. Em 1999, fez Hurricane, o Furacão, com Denzel Washington. John McTiernan.Reconhecido como bom artesão, fez diversos filmes de ação e orçamento alto, de sucesso (Duro de Matar, A Caçada ao Outubro Vermelho) ou não (O Último Grande Herói). Seu filme anterior foi O 13º Guerreiro.
Roteiro e argumento Originais de Alan R. Trustman Roteiro de Leslie Dixon e Kurt Wimmer, baseado no de Alan R. Trustman para o filme de 1968.
Elenco Steve McQueen, Faye Dunaway, Paul Burke, Jack Weston. Pierce Brosnan, Rene Russo, Denis Leary, Faye Dunaway.
Música Michel Legrand; letras de Alan e Marilyn Bergman. Bill Conti
Fotografia Haskell Wexler Tom Priestley
Ação Os dias de então, ou seja, 1968. Em Boston, Nova Inglaterra, a capital dos brancos-anglo-saxões-protestantes, ricos de muitas gerações. Os dias de hoje, ou seja, 1999. Em Nova York, a capital do mundo, onde há de tudo, e nenhuma excessiva demonstração de riqueza  parece exagerada. 
O novo cita o original   Com a presença de Faye Dunaway no elenco, como a psicóloga de Thomas Crown. E com a canção tema do filme original, tocada em três diferentes ocasiões.
Quem é Thomas Crown Tem 36 anos, é divorciado e teve filhos, formado em administração em Harvard, dono de empresa de investimentos, fortuna avaliada em US$ 4 milhões. Hobbies: namora muito; joga golfe, xadrez, pólo, pilota buggy na praia e planador, mas o sonho é cascar fora de tudo aquilo. Bebe coquetéis e scotch e, naturalmente, fuma charutos e cigarros. Tem 42 anos, aparentemente nunca foi casado, é dono de uma gigantesca empresa que promove fusões e aquisições, fortuna não avaliada mas muito, muitíssimo maior que a do Crown 1968. Hobbies: namora muito; joga golfe, pilota barcos a vela e planador, mas a paixão é a arte, em especial o impressionismo. Bebe vinho ou scotch e, naturalmente, não fuma.
O valor do roubo US$ 2,6 milhões, em dinheiro. US$ 100 milhões, na forma de um Monet.
A participação de Crown na ação do roubo Nenhuma. Observa à distância e mais tarde recolhe o dinheiro. Comemora sozinho, com um brinde a si mesmo no espelho, um charuto e grandes gargalhadas. Total: é ele quem efetivamente rouba, enquanto outros distraem as atenções. Comemora sozinho, com um brinde ao produto do roubo e suaves sorrisos.
O que o espectador sabe sobre o recrutamento dos ajudantes Tudo. O filme abre mostrando como Crown escolhe um deles. Nada. Não se mostra nem explica nada.
O personagem da mulher que investiga Crown; os figurinos. Vicki Anderson é excelente na profissão e extremamente segura de si. É uma mulher ao mesmo tempo um tanto vulgar e de inteligência brilhante, uma self made woman num meio de um mundo machista, uma ex-pobre que está ascendendo, fascinada pelo dinheiro dos ladrões finos que ela investiga. As roupas criadas para Faye Dunaway são feitas para ajudar na compreensão do personagem: é uma coisa cara, de costureiros caros, mas de certo mau gosto, colorida demais, quase escandalosa, quase abertamente cafona, coisa de novo rico. Os figurinos são de Ron Postal, Alan Levine, Theadora Van Runkle, esta três vezes indicada ao Oscar, autora de figurinos para filmes de Coppola, Scorsese, Mulligan, Penn, Bogdanovich.  Catherine Benning é excelente na profissão e extremamente segura de si. Viveu na Europa, casou-se na Inglaterra, teve diversos amantes; sofisticou-se, sabe línguas, entende tudo sobre arte. As roupas feitas para Rene Russo mostram bem as diferenças entre as duas personagens femininas. Aqui, a heroína também foi pobre, do interior (ela é de Ohio), mas aprendeu depressa com o convívio com os ricos; os vestidos são em geral mais formais, clássicos, em cores básicas. A figurinista Kate Harrington, no entanto, deixou passar um erro imbecil: Catherine usa casaco de pele em um dia que já havia sido descrito como especialmente quente. Os ternos de Crown são absolutamente clássicos, elegantes (bem mais que os do Crown de Steve McQueen).
O primeiro diálogo Ele pergunta em que ela trabalha.- Seguros, sr. Crown.- Já tenho.- Espero que sim. (Pausa.) Eu investigo.

– Algo específico?

– O banco, sr. Crown. O grande assalto. (…)

– E você está caçando quem?

– Você. (Close no rosto dele, que abre uma grande risada.)

 

Ele pergunta em que ela trabalha.- No mundo da arte. (…)- Dona de galeria? – Não, é mais perto de seguros.

– Já tenho.

– Não para isso. O quadro? O Monet? Você não acha que eles simplesmente fariam um cheque de US$ 100 milhões, não é?

– Então você…

– Pego as coisas para eles. Quando há tanto dinheiro na jogada, eu pego a cabeça de alguém para eles.

– E você está atrás da cabeça de quem?

– Da sua. Boa noite, sr. Crown.

A cena de amor Crown e Vicki jogam xadrez; longa seqüência de closes de um e de outro, o ombro dela, a boca, o braço. Beijam-se; a câmara rodopia em torno deles, a imagem fica flu, um calendoscópio flu. Crown e Catherine dançam no meio de uma pista cheia de gente; ela usa um vestido transparente; tomadas rápidas, febris; corte para a casa dele;  fazem amor em diversas posições e lugares, a câmara em grua no teto.
Por quê “Não é o dinheiro. Sou eu. Sou eu e o sistema. Eu e o sistema.” “Vamos mandar ver.”

 

É impressionante como a história do Crown 1968 (foto abaixo) é simples, direta, descomplicada, comparando-se com a do Crown 1999. É como se o diretor McTiernan e seus roteiristas estivessem dizendo: OK, partimos da mesma base, e de uma história que não era nossa, mas olhem só quantos elementos novos acrescentamos. Há tramas paralelas, personagens, ligações e subtramas, um enrolado novelo de detalhes, de adereços que inexistiam no primeiro. Basta pegar o exemplo da ação do roubo em si. Os dois roubos são bem planejados, com cuidado e atenção; o primeiro, no entanto, é simples, rápido, pabum. O segundo é um novelo emaranhado de técnicas, tecnologias, macetes, idas e vindas, o escambau.

acrownvelhoComo se pode observar em tantos remakes, aqui também fica extremamente nítida a tendência do cinema americano – que, afinal, é também um maravilhoso espelho da sociedade que o produz e na qual ele se inspira – rumo ao exagero, à overdose, à inflação de dólares e de superlativos. Não basta ser um grande roubo, tem que ser um roubo extraordinariamente grande. Não basta ser um milionário, tem que ser um dos maiores biliardários do planeta. O lugar secreto-predileto do Crown 1968 – só para pegar um exemplo emblemático – era uma casa ainda inacabada diante do mar, numa praia razoavelmente deserta, ali mesmo, perto de sua cidade; o lugar secreto-predileto do Crown 1999 é uma casa deslumbrantérrima com uma vista mais deslumbrantérrima ainda de uma praia inteira na Martinica. E por aí vai.

No mesmo sentido, a comparação dos dois filmes demonstra, de maneira apaixonantemente clara, a viagem sem retorno do cinema rumo à explicitude total. Tudo o que antes era insinuado agora é escancarado; tudo o que antes era implícito agora é mostrado às claras, se possível em close. As cenas de amor dos dois filmes são um exemplo perfeito disso. Mais claro do que isso, talvez, só a comparação das duas versões de Cape Fear, a que no Brasil chamou Círculo do Medo, de 1962, de J. Lee Thompson, e Cabo do Medo, que Martin Scorsese fez em 1991,  justamente para demonstrar esse caminho, essa tendência sem retorno da explicitude.

De resto, o fato é que são dois bons filmes, gostosos de se ver, os dois Crown. O de 1968 tem, além do fantástico magnetismo da dupla Steve McQueen-Faye Dunaway, a criatividade do diretor de fotografia Haskell Wexler, que decompõe a tela em diversos fragmentos, como se fosse um quebra-cabeças, um calendoscópio, e obtém um resultado belíssimo, extraordinário. E tem ainda, como cereja suprema sobre o sorvete, a música de Michel Legrand, um gênio em ebulição quatro anos apenas depois do tour-de-force de Os Guarda-Chuvas do Amor/Les Parapluies de Chebourg, o até hoje único filme da história todinho cantado. A canção-tema, composta com os letristas Alan e Marilyn Bergman, The Windmills of Your Mind (ou Les Moulins de Mon Coeur, na língua do compositor), Oscar de melhor canção num tempo de grandes canções, se mantém irresistível – diamantes são para sempre, tanto que o remake usa e abusa dela. 

E o remake pode ser visto e apreciado independentemente do original e de tudo o que se falou aqui de semelhanças e dessemelhanças entre um e outro. É um agradável divertissement. O diretor McTiernan se redime de todos os Duro de Matar que já fez com uma seqüência antológica, brilhante mesmo, a da segunda estrepolia de Thomas Crown no museu, ao som de “Sinnerman”, uma secular canção folk tornada deliciosa, rítmica, dançante, na voz inigualável de Nina Simone, em que uma torrente de homens com chapéus-coco homenageia Magritte, a beleza da vida, o bom humor e a capacidade de fazer troça do sistema. É coisa pra ver e rever – e ver e rever é mais fácil e melhor no DVD.

3 Comentários para “Crown, o Magnífico e Thomas Crown – A Arte do Crime / The Thomas Crown Affair”

  1. Boa Noite!
    Não conhecia o Crown de 1968.O Crown de Steve McQueen.Acabei de assistir no canal MGM do PrimeVideo.
    Mas felizmente eu já tinha assistido a versão de Pierce Brosnan de 1999.E na minha opinião essa é versão definitiva para essa história!
    McQueen está mega canastrão no filme,perdendo a oportunidade de construir um personagem que Pierce Brosnan com menos beleza mas muito mais classe,soube exatamente como conduzir a cada cena do remake.A trama se tornou inteligente e intrigante.Romance e suspense num nivel Hitchcock. A ideia de celebrar a arte (principalmente na cena final!) definitiva e completamente supera o filme de 1968…

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