A Qualquer Preço / A Civil Action


Nota: ★★★★

Anotação em 1999: Um belo, belo filme. Segundo a capinha do vídeo, o USA Today disse que é “o melhor de todos os filmes de tribunais”. De fato, ele é um dos melhores filmes de tribunais – com o fascinante detalhe de que tem pouquíssimo tribunal propriamente dito. É um desses filmes profundamente progressistas, liberais (no sentido americano e político da palavra), de que o cinema americano às vezes é capaz.

Não é à toa que Robert Redford é um dos produtores, e Sydney Pollack tem uma participação especial. É um filme na tradição tão cara ao cinema americano do pequeno David lutando no tribunal contra os grandes Golias, o homem sozinho contra as grandes corporações – e de como, no processo, ele, um cínico, se torna idealista. Lembra O Veredito, de Sidney Lumet, ele também engajado e progressista – e, para acentuar a semelhança, a primeira seqüência trata exatamente de um caso de erro hospitalar em Boston. O filme lembra também o tema recorrente de John Grisham em The Rainmaker (jovem advogado versus companhia seguradora) e em The Street Lawyer (jovem advogado versus a miséria dos sem-teto e versus gigantesca firma de advocacia).

Extremamente previsível no começo, o filme vai surpreendendo mais para o fim.

Talvez por ser passado na Nova Inglaterra, é, como os filmes de esquerda ingleses, o tempo todinho consciente das diferenças de classe; enfatiza o abismo social em cada pequeno detalhe. O personagem central, feito por Travolta, brilhante, Jan Schlichtmann (ele mesmo consultor do filme, como se verá nos créditos finais), ficou riquíssimo defendendo vítimas de lesões corporais – por si só um ramo considerado menor da advocacia, coisa de “chantagistas”, “caçadores de ambulância”, mas tem origem humilde (o nome denuncia o imigrante nessa sociedade de Wasps); em uma das diversas seqüências brilhantes, ele se encontra em Nova York com o vice-presidente de uma grande corporação (é o papel de Sydney Pollack), e o encontro se dá no Clube de Harvard – e o vice-presidente o espezinha ao fazê-lo confessar que não, ele não se formou em Harvard, e sim em Cornell; algo como não na USP, mas em Mogi das Cruzes.

O monólogo de abertura e a frase final acentuam essa característica do sistema baseado na diferença social de uma forma brutal. São de um brilho, e de uma violência, fora do comum.

O lead: um homem – Travolta – empurra um outro numa cadeira de rodas, um tetraplégico, num longo corredor de hospital. Voz em off: “É assim: um querelante morto raramente vale tanto quanto um vivo, aleijado. Porém, se a morte for agonizante, e não rápida, por afogamento ou acidente, o valor pode aumentar consideravelmente Um adulto morto, de 20 a 30 anos, vale menos que um de 40 a 50. Uma mulher morta, menos que um homem morto. Um adulto solteiro, menos que um caso. Negro menos que branco. Pobre menos que rico. A vítima perfeita é um profissional branco, de 40 anos, no auge de sua carreira, derrubado na flor da idade. E a mais imperfeita? Segundo o direito de lesões corporais, uma criança morta é a vítima menos importante.”  Corta em rápido fade out. No fundo escuro, surge o aviso: Baseado em uma história real. Na seqüência seguinte, Travolta entra com o tetraplégico em um tribunal de júri; os jurados olham a vítima com horror; o advogado da parte acusada, o grande hospital, escreve num papelzinho: 1.2 M, final – e Travolta acena negativamente. Daí a pouco, vem nova oferta de acordo: 1,5 milhão. Nova negativa. Logo vem outra: 2 M – Please.

Em seguida vem a apresentação – Travolta e seus colegas de escritório comemoram o acordo.

O personagem (real, lembro) de Travolta, esse Jan Schlitmann, é isso: um extremamente bem sucedido advogado especializado em casos de lesões corporais, as physical injuries de que tanto nos fala o John Grisham em seus romances. Vai em seguida conhecer o caso de oito crianças mortas em uma cidadezinha ao Norte de Boston, com câncer, adquirido da água que bebem, envenenada por resíduos químicos altamente tóxicos, cancerígenos. Crianças mortas – a coisa que vale menos na sua profissão. E ele resolve pegar o caso (previsível, claro), contra duas grandes corporações. Vai perder todo o muito dinheiro  que tem durante o processo.

 

Se você não viu o filme, não leia a partir de agora

 Sim, porque, neste filme, ao contrário de tantos outros, David não vence Golias. No final, empobrecido, sem recurso algum, o ex-riquíssimo advogado entrega o caso a outro gigante, a EPA, a agência governamental de proteção ao ambiente, que, esta sim, vencerá as corporações, o que só ficamos sabendo pelos letreiros finais característicos de filmes baseados em histórias reais.

Na cena final, ele está diante de uma juíza (Kathy Bates, em participação especial não mencionada nos créditos), aparentemente apresentando um pedido de falência pessoal. A câmara fica quase o tempo todo em plano americano em Travolta. A juíza: “O senhor está pedindo a seus credores – bem, é difícil acreditar…” O advogado: “Eu sei”. A juíza: “… que depois de exercer o Direito durante 17 anos as suas únicas posses sejam US$ 14 em uma conta corrente e um rádio portátil. Onde foi parar tudo?” Ele (suavemente): “O dinheiro?” Ela: “O dinheiro, as propriedades, os pertences pessoas, as coisas que se adquirem na vida. As coisas com as quais se mede a vida de alguém. (Pausa. Câmara nele.) O que aconteceu?”

As coisas com as quais se mede a vida de alguém.

Brilho. Um brilho.

A Qualquer Preço/A Civil Action

De Steven Zaillian, EUA, 1998.

Com John Travolta, Robert Duvall, James Gandolfin, John Lithgow, William H. Mcay, Kathleen Quinlan, Sydney Pollack, Kate Bathes (não creditada).

Roteiro Steven Zaillian

Baseado no livro de Jonathan Harr

Música Danny Elfman

Produção Scott Rudin, Robert Redford, Rachel Pfeffer; Paramount e Touchstone Pictures

Cor, 115 min.

6 Comentários para “A Qualquer Preço / A Civil Action”

  1. Gostaria apenas de acrescentar uma importante observação a respeito da mensagem principal do filme: a mudança de paradigmas pela qual nossa sociedade está passando. Ou seja, da prioridade aos direitos humanos aos direitos ambientais. Atualmente se caracteriza um crime de maior gravidade agredir o meio ambiente. O ser humano está em segundo plano. Isso fica claro pra mim no filme, na minha opinião um dos melhores que já assisti.

  2. Excelente filme e final.
    Quebra de paradigmas na forma de conduzir um filme.
    Um dos melhores que já assisti (umas 10 vezes)

  3. Que filme interessante. A questão ambiental tá em alta atualmente, dando ao filme um caráter atual. O ritmo do filme, com as falas entrepostas pelas cenas, de flashback, ou com as de acusação e defesa, e o final da perda da causa são o ponto alto do filme. Muito bom.

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