Um Gesto a Mais / A Further Gesture


Nota: ★★★☆

Anotação em 1998: Gostei demais deste filme. Talvez por causa da surpresa completa – me foi enviado pela empresa de vídeo, e eu não tinha qualquer tipo de referência, peguei pra ver entre vários filmes que estão sendo lançados em vídeo nos próximos meses, e fiquei assustado com o lead brilhante. Talvez, e em boa parte por causa da Irlanda, esse país extremamente fascinante.

O lead é de um brilho absoluto – e é verdade que o filme cai um pouco mais pro fim. Mas o lead é brilhante.

Tomada blank, tudo preto na tela. Voz de mulher em off: Common, Sean, talk to me. Corte seco, surge primeira tomada: o rosto de Stephen Rea em primeiríssimo plano, big-close-up, só o rosto, ocupando a tela inteira. Stephen Rea consegue uma proeza absoluta: ele transmite toda a tristeza do mundo, uma tristeza avassaladora, sem jeito, sem saída.

Plano seguinte, big-close-up também, da mulher que está falando com ele – uma mulher extraordinariamente, irlandesamente bonita, gigantescos olhos azuis do azul mais profundo, cabelo negro. O espectador vai percebendo de imediato que é hora de visita em um presídio de segurança máxima na Irlanda do Norte, presos do IRA. Sean e Roisin têm um caso de amor complicado, diferente, especial – o espectador percebe imediatamente.

Mostram-se outros casais, sob os olhares atentos dos guardas. Duas outras mulheres visitantes passam armas para seus maridos, saídas de debaixo das saias, diretamente para as cuecas dos homens. Sean e Roisin também se tocam, mas entre eles não há passagem de armas, há tesão, tensão, impasse. Um guarda diz que a hora da visita acabou, as mulheres saem, o espectador percebe que haverá uma tentativa de fuga – e haverá, sim, em breve.

Nada é dito claramente. Não há nenhum tipo de legenda esclarecedora, do tipo Belfast, Irlanda do Norte, ano tal. Nada.

No momento seguinte, em que começa a tentativa de fuga, uma arma rola no chão e vai para bem perto de Sean. Ele hesita um longo momento entre pegá-la ou deixá-la. Enfim pega.

Todo o filme é construído em cima de silêncios, elipses, omissões. Nada é tornado absolutamente claro para o espectador. Nunca é dito por que Sean está preso, por que ele quer que Roisin o esqueça e faça a sua própria vida. Mas, entre reticências, entre ditos porém não explicitados – todo o filme é implícito, nunca explícito -, o espectador fica sabendo que Sean na verdade não é da linha de frente do IRA; no máximo era um colaborador, um simpatizante, mas fez alguma besteira que o levou pra cadeia, e tudo o que quer é que a mulher, namorada, amante (a gente nunca fica sabendo) se livre dele, viva a sua vida, já que a vida dele está irremediavelmente perdida. E ficará ainda mais irremediavelmente perdida depois da fuga da prisão nos minutos iniciais do filme, fuga que ele não planejou, da qual ele sequer tinha conhecimento antecipado.

Sean consegue sobreviver na fuga, junto com Richard, esse sim, visivelmente um líder (ou no mínimo um militante importante) do IRA. Richard traz Roisin para um encontro com Sean (estamos com dez minutos de filme), e Sean insiste em que ela tem que viver a vida sem ele, porque ele não tem qualquer tipo de futuro na vida. A cena de amor dos dois nesse momento é extraordinariamente bela. A partir daí Roisin some totalmente.

(Ao rever o filme, poucos dias depois de ver pela primeira vez, percebi que na verdade fica claro, já nesse iniciozinho, que Sean não é do IRA, e sim um criminoso comum, possivelmente um assaltante de banco, alguém que conhece bem armas. Isso fica claro já nas primeiras cenas, quando se dá a tentativa de fuga e a arma vai parar perto de Sean e ele a pega. Um pouco depois, durante a fuga, Richard diz para Sean: Você só tem duas saídas; ou foge do país, ou se junta a nós. Há de novo uma elipse, sim, e vemos Richard, antes de Sean reencontrar Roisin, entregar a ele passaporte falso e dinheiro para a fuga do país. De fato, da primeira vez eu notei certo; o filme se constrói em elipses. Sean não diz que não quer se unir ao IRA. Isso fica implícito na cena em que Richard entrega a ele o passaporte e o dinheiro.)

Com passaporte falso, algum dinheiro e a ordem para ficar longe da comunidade irlandesa para não atrair a polícia, Sean vai para Nova York, onde trabalha como qualquer imigrante ilegal, no meio de latinos. Acaba levando uma facada de uma garota que ele tentava salvar numa briga de amantes, e é levado pelo colega guatemalteco de trabalho ilegal para a casa dele, onde conhece a irmã, Monica. A cena, embora não seja nova, é de arrepiar: saindo de um desmaio, ele vê Roisin, que vai se transformando aos poucos em Monica. O espectador esperto sabe, aí, com 20 minutos de filme, que essa será sua paixão e sua perdição.

A mulher de beleza estonteante que faz Roisin é – eu desconfiei de cara – a morena de olhos profundamente azuis que pela primeira vez trabalhou em um filme descoberta pelo Alan Parker para The Commitments. Ela então era Maria Doyle. Aqui se apresenta como Maria Doyle Kennedy. Provavelmente casou-se, como boa irlandesa católica. O cinema deveria aproveitar melhor essa beleza absurda. A atriz que faz a guatamalteca Monica chama-se Rosana Pastor, e é também de uma beleza formidável.

O filme se perde um pouco ao lincar a história do recalcitrante irlandês com um grupo nada organizado de pessoas da Guatemala que planeja matar um coronel corrupto e assassino; falta lógica e razão. Mas não faz muito mal – é um belo filme.

Faz lembrar um pouco, pela ligação de um personagem das Ilhas Britânicas com uma bela mulher da América Central, o filme Uma Canção para Carla/Carla’s Song, de Ken Loach.

(Na verdade o filme se perde mesmo um pouco a partir daí porque a trama envolvendo os guatemaltecos não é clara, é visivelmente algo que o diretor e o roteirista não dominam. Mas – percebi isso só ao rever – é isso que faz o filme existir, é o further gesture do título original. Sean, o bandido comum irlandês, se envolve com o IRA na tentativa de fuga, ajuda o povo metido em política. Fará isso de novo com o povo da América Central, ao se apaixonar por uma mulher latino-americana e perceber que eles são amadores, e precisam do profissionalismo que só ele possui. Sim, sim – é um bonito filme.)

 

Fiz esta resenha para a Barbara:

 

O personagem principal de Um Gesto a Mais vive duas intensas histórias de amor – mas o tema central do filme é a solidariedade. Sean (interpretado pelo Stephen Rea, de Traídos pelo Desejo), um irlandês de Belfast, preso junto com militantes do IRA, o exército republicano que luta contra o domínio inglês, rejeita o amor de Roisin por entender que sem ele a vida dela será melhor. Depois de fugir do presídio, esconde-se em bairro pobre de Nova York, território de imigrantes latinos – e, por amor a uma guatemalteca, vai se envolver numa luta que não é sua. É um filme simples e belo, todo construído em cima de silêncios, elipses, omissões.

Um Gesto a Mais/A Further Gesture 

De Robert Dornhelm, Irlanda-Inglaterra-Espanha-Alemanha, 1997

Com Stephen Rea (Sean), Alfred Molina, Maria Doyle Kennedy (Roisin), Rosana Pastor (Monica)

Argumento Stephen Rea

Roteiro Ronan Bennett

Produção Chanel Four e Irish Film Board

Cor, 96 min

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