Sombras da Lei / Night Falls on Manhattan


Nota: ★★★½

Resenha para a Agência Estado, em 1997: Mesmo quando faz filmes que não são sucesso, ou que são menores dentro da sua obra, o diretor Sidney Lumet faz filmes muito acima da média.

É o caso de A Manhã Seguinte, de 1986, com Jane Fonda e Jeff Bridges, sobre alcoolismo, falsidade e traição, ou o pouco reconhecido mas extremamente sensível O Peso de um Passado, de 1988, com River Phoenix e Christine Lahti, sobre relações familiares, o que restou dos ideais libertários dos anos 60 e as distâncias entre o que é legal e o que é justo.

Até quando faz comédia ele trata de coisas sérias – como em Negócios de Família, de 1989, com Sean Connery, Dustin Hoffman e Mathew Broderick, onde fala, de novo, de laços familiares, fidelidade aos amigos e parentes e as diferenças às vezes sutis entre viver do lado da lei ou fora dela. Embora Uma Estranha Entre Nós, de 1992, com Melanie Griffith em excelente papel, como a policial que se infiltra na comunidade de judeus ortodoxos de Nova York à procura de um criminoso, tenha sido um belo filme, foi subestimado na época de seu lançamento, e O Veredito, de 1982, com Paul Newman como o advogado bêbado e decadente que defende uma família vítima de erro médico, permanecia como o último grande trabalho do diretor.

Até agora. Sombras da Lei, de 1996, é um filme excepcional, um dos melhores lançados em vídeo em 1997. Tudo funciona bem, tudo se encaixa, tudo é perfeito. Lumet é um veterano – seu longa de estréia, Doze Homens e uma Sentença, depois de anos trabalhando na TV, é de 1957, e é até hoje um dos melhores filmes de tribunal, e um dos mais corajosos e liberais (no sentido político do termo) do cinema. Certamente por isso mesmo, ele não cede a dois dos modismos mais desagradáveis do cinema americano recente, os cortes rápidos e a insistência no primeiro plano. Prefere os planos maiores, mais abrangentes, gerais; usa às vezes cortes rápidos, sim, mas mantendo o mesmo enquadramento da tomada anterior, apenas para realçar a passagem do tempo. Consegue com isso fazer um thriller, um filme que tem muita ação, com ritmo dinâmico, mas não apressado. Ao contrário. Conta uma história complexa, cheia de diálogos sérios, pesados, sem no entanto pretender abafar o espectador com informações demais por segundo. Quer que o espectador acompanhe todos os detalhes da trama. Que faça seu próprio juízo sobre o que está sendo mostrado.

Com menos de meia hora de filme, já houve três assassinatos e uma tentativa, um julgamento em que se defrontam um assistente da Promotoria (Andy Garcia) novato, inexperiente, pobre e portanto formado em escolas públicas, e um advogado de defesa (Richard Dreyfuss) famosíssimo, respeitado, tinhoso, cheio de truques – e já saiu o veredito. Ou seja: em 30 minutos, Lumet já ultrapassou o que normalmente os filmes desse tipo levam o tempo todo para mostrar. Já apresentou pelo menos parte da Justiça como inepta e desatenta, pelo menos parte da Polícia como corrupta, a Promotoria como uma grande arena onde a política e as vaidades pessoais fazem a festa, e a imprensa como insensível devoradora de escândalos. E a partir daí é que o diretor vai mais fundo.

Vai discutir se e como é possível escapar da corrupção num mundo onde ela está presente em cada pequeno detalhe. (“Quem é capaz de jogar fora US$ 600 mil por ano?”, pergunta três vezes um personagem.) Vai deixar implícita uma das idéias mais subversivas e sérias que estão colocadas na sociedade hoje – a de que a luta contra o tráfico é impossível de se vencer, enquanto o tráfico for proibido e os traficantes continuarem comprando todos os tipos de favores; ou seja: a proibição do tráfico só favorece os traficantes e os corruptos na Polícia e na Justiça, mais nada. E vai discutir, mais uma vez, e profundamente – com o espectador, com o promotor de Justiça cheio de ideiais corretos, um veterano e digno juiz, uma advogada jovem, ambiciosa e honesta, e o advogado experiente, veterano das lutas dos anos 60, líder de todas as campanhas pelos direitos humanos – a separação entre o justo e o legal.

Lumet junta vários dos temas que já abordou na sua longa filmografia – 40 filmes, com este agora. A fidelidade aos familiares; até onde vai essa fidelidade se um deles errou, pecou, se vendeu; a fidelidade ou a traição ao próprio amor, quando por uma artimanha da vida os amantes estão em lados diferentes em uma batalha profissional; o dilema de se fazer ou não alguma concessão aos princípios morais e pessoais em troca de um objetivo que se persegue; os limites da Justiça em uma sociedade desagregada; e de como é necessária a ajuda, ainda que pequena, de cada pessoa para que o sistema não apodreça de vez.

Um grande, excepcional filme. Não perca.

Outros filmes de Sidney Lumet neste site:

Sob Suspeita/Find me Guilty, de 2006;

Inspeção Geral/Strip Search, de 2004;

Príncipe da Cidade/Prince of the City, de 1981;

Limite de Segurança/Fail Safe, de 1964;

Mulher daquela Espécie/That Kind of Woman, de 1959.

Sombras da Lei/Night Falls on Manhattan

De Sidney Lumet, EUA, 1996.

Com Andy Garcia, James Gandolfini, Ian Holm, Lena Olin, Ron Leibman, Richard Dreyfuss

Roteiro Sidney Lumet

Baseado em novela de Robert Daley

Música Mark Isham

Cor, 114 min (Há um Director’s Cut de 118 min)

4 Comentários para “Sombras da Lei / Night Falls on Manhattan”

  1. Bom dia!

    Irei ver este!

    Gostave de ler as suas análises à obra de Lumet relativa aos anos 70 (Serpico, Dog Day Afternoon)

    Abraço

Comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *